Lápis Mágico

As Janeiras!

Cantar as “Janeiras” é uma tradição em Portugal que consiste no cantar de músicas pelas ruas por grupos de pessoas anunciando o nascimento de Jesus, desejando um feliz Ano Novo. Esses grupos vão de porta em porta durante o mês de Janeiro até dia 6 (dia de Reis).

As Janeiras de Brito Camacho, conto de Natal português

Se já restava pouco do madeiro do Natal, quando os ganhões chegavam do trabalho, arrumada a copa e a apeiragem, iam buscar um madeiro que o meu pai tinha escolhido no monturo da lenha grossa, e colocavam-no na chaminé, arrumado à parede. Este frete era geralmente pago com um copo de vinho, e bem o mereciam os desgraçados, porque alombavam com um madeiro pesando umas poucas de arrobas. Cozia-se sempre neste dia, e a última fornada de pão tirava-se já noite escura, às vezes com a ganharia à mesa para a ceia.

A cada janeireiro, homem ou mulher, dava-se um pão; aos jovens dava-se metade ou um quarto, conforme o seu tamanho, e às vezes, já no clarear da madrugada, havia necessidade de reduzir a esmola, pois não chegava para tanta gente o pão cozido. Tal havia que apanhava duas, três ou quatro esmolas, incorporando-se cm diferentes ranchos, e o mesmo rancho chegava a cantar duas vezes, mudando as vozes.

— São os mesmos que cantaram há bocadinho.

Quem ia levar a esmola, geralmente era uma criança, não se dispensava de dizer, mesmo que lhe não encomendassem o sermão:

— Vossemecês ainda não há nada de tempo que aqui estiveram. Se cá voltarem, não levam esmola.

Que não; vossemecê está enganada, a gente chegou agora mesmo da vila, e ainda não cantámos em mais monte nenhum. Se quer ver o que trazemos… Nenhum rancho denunciava outro rancho, embora nem todos fizessem a mesma coisa, a muitos repugnando uma tão descarada fraude, tanto mais que nela se envolvia Deus Nosso Pai, invocado a cada instante:

Lá vai uma, lá vão duas

Por cima do seu telhado.

Deus lhe dê muita fortuna

Ao pão que tiver semeado.

Se a noite estava escura, A certa altura o maricas do Narciso, que andava no serviço das esmolas, declara que estavam cantando uns homens que já tinham cantado duas vezes, e como ele lhes dissesse que escusavam de cantar porque não apanhavam mais nada, eles ameaçaram-no de lhe bater, chegando um deles a atirar-lhe um sopapo, que por sorte o não apanhou. — Estão bêbedos, com certeza.

Disse meu pai ao compadre Cara-Rota:

— Tenha paciência, compadre, dê uma voltinha lá por fora, a ver o que há.

O compadre Cara-Rota saiu, levando na mão um fueiro, e quando chegou à porta do Monte ainda os homens cantavam. Eram quatro, um já entrado em anos.

— Por os modos vocês tomaram as janeiras de empreitada, hem?

Os homens ouviram, mas não fizeram caso, e continuaram a cantar.

O compadre Cara-Rota foi-se aproximando, e como vissem que ele não estava com as mãos abanando, calcularam que podia armar-se sarilho se continuassem a cantar, e que, em todo o caso, mais esmola não apanhavam.

Um deles, o mais pimpão, desenrolando-se da manta, e pondo ao ombro o bordão, disse para os companheiros:

— O melhor é a gente ir-se embora. A esmola que nos tinham dar, que a metam…

Já fora da calçada do Monte, virando-se para trás, disse ao compadre Cara Rota, desafiando-o com insolência:

— O amigo não canta, mas pode ser que tenha as goelas secas. Se as quiser molhar, venha com a gente até ali à estrada, que ninguém lhe faz mal. — Vão lá andando que eu já os apanho.

Entrou na casa dos ganhões, trocou o fueiro pelo cacete mais forte que lá encontrou, e ainda os janeireiros não tinham chegado à estrada, já ele lhes falava desta sorte: — Qual de vocês é que tem a borracha?

— Somos nós todos — respondeu o que o desafiara.

Palavras não eram ditas, cai-lhe na cabeça uma bordoada que o fez ir a terra.

Entraram todos na refrega, está bem de ver, mas o compadre Cara-Rota, ágil como um palhaço, não se deixava tocar, e das cacetadas que despedia nenhuma caía no chão. Durou a luta poucos minutos, saindo dela um dos janeireiros com a cabeça rachada, outro com braço partido, e os outros muito bem zurzidos, mas sem nada quebrado.

— Então os homens, compadre Francisco?

— Fui-lhes levar a esmola ali à estrada, e lá se foram na paz do Senhor.

As janeiras


Era uma figura original, o compadre Cara-Rota, meu compadre de verdade, compadre de águas-bentas. Ninguém era mais desembaraçado do que ele no seu ofício — nem mais desembaraçado nem mais perfeito. Por este motivo tinha uma grande freguesia, chamado para todos os Montes, e na Vila, trabalhando na sua casa ou na casa dos outros, nunca se lhe acabava que fazer. Era alto, desempenado, forte como as armas, multiplicando a força pela agilidade, de uma rara agilidade, o que lhe permitia brincar numa praça, com os touros, que eram quase sempre vacas, por forma a entusiasmar a família.

Tourada em que ele trabalhasse e o Esbandalha, era tourada de sucesso — como quando trabalhavam em Lisboa, na Praça de Sant’Ana, os manos Robertos. As vacas eram corridas desemboladas, e bandarilhas não se usavam no toureio da Província.

A sorte mestra, aquela em que o compadre Cara-Rota era exímio, na opinião de muitos inexcedível, era a do emplastro, que consistia em pegar à testa da rês, com mel, um quarto de papel, como se fosse um escrito num vidro. Corria como um gamo, e dava saltos como um ginasta de circo.

Gostava da pândega, mas não era homem de bebedeiras, sempre lembrado de que tinha lá em casa uma filharada de que era o amparo e sustento. A sua grande paixão, dominante, avassaladora, era a caça. Dizia o meu pai:

— Homem inviccionado na caça como o compadre Cara-Rota, não quero que haja outro.

Era muito rara a tarde em que ele não largava cedo o trabalho para ir matar um coelho, à espera, e pelo dia adiante, se ouvia tiros no Cabeço ou via passarem os caçadores, não se importava mais com o que estava fazendo; metia as ferramentas na alcofa, e às escondidas, se podia ser, tirava de casa a espingarda, e polvarinho, a patrona, e pernas para que vos quero, até se meter na linha.

— Ora compadre Francisco, tudo o que é de mais não presta. Então vossemecê vê que tenho aí uma parelha à boa vida, e abala prá caça deixando o trabalho em meio?…

— Não se apoquente o Sr. Compadre que tudo se há de fazer a tempo e horas.

E fazia. Um bocadinho de serão, um bocadinho de madrugada e o compadre Cara-Rota tinha o serviço feito como se tivesse trabalhado sem descontinuidade.


Quer fosse às perdizes, no ar, quer fosse às lebres, na terra limpa, quer fosse aos coelhos, na charneca, poucos se explicavam como ele — peça visada era peça morta. Gostava muito de caçar nas pontas, e ordinariamente, em jolda, as pontas eram feitas pelos melhores atiradores, sempre um bocadinho adiantadas, quase à espera da caça que se safava.

De uma vez, caçando na Daroeira, ia ele numa ponta e eu na sobreponta respetiva, pouco distante da orla do mato. Um mitra, empurrado pela linha, sai do mato, sorrateiramente, enfia para a terra limpa, correndo como um danado.

O compadre Cara-Rota desfecha-lhe um tiro, e o coelho, se muito corria, muito mais passou a correr, mudando de rumo, enfiando por uma vereda, que marginava o mato. Lobrigo o figurão lá muito longe, e largo-lhe um. Tiro, sem grande confiança em que o chumbo lá chegasse. Ouviu-se o tiro, e viu-se o coelho, ao mesmo tempo, enrolar as patinhas, morto no meio da vereda. Fui buscar o coelho, muito satisfeito, tanto mais que destas me aconteciam poucas.

— Bem feita, Sr. Compadre!… Se eu tivesse vergonha não voltava a pegar numa espingarda.

Estava eu a empiolar o mitra quando o compadre Cara-Rota, como se lhe desse uma veneta, avança para mim, e diz com o ar de quem procura responder a uma interrogação interior, ao mesmo tempo dolorosa e vexatória:

— Ó Sr. Compadre, faça favor, deixe-me ver uma coisa.

Pegou no coelho, olhou-o, voltou a olha-lo, apalpando-o muito bem apalpado, quase polegada por polegada, e com ele suspenso pelas orelhas, e espingarda encostada a uma carrasqueira, disse-me pausadamente, como se estivesse a desenvolver um raciocínio complicado:

— O Sr. Compadre atirou ao coelho um pouco de rabo, mas do lado esquerdo; eu atirei-lhe de atravessado, pelo lado direito, ia ele correndo, fora do mato, nesta direção … Só um podão que nunca tivesse pegado numa arma, erraria num caso destes. A verdade é que ele não ficou no meu tiro; meteu-se na vereda, e só quando o Sr. Compadre desfechou com ele, é que enrolou a copa e nunca mais se mexeu. Mas faça o Sr. Compadre favor de ver — o coelho não tem um bago de chumbo do seu lado e do meu lado tem uns poucos.

Era verdade. O coelho fora morto pelo compadre Cara-Rota e perante a evidência irrecusável eu dei sinais de mágoa embora não desabafasse em lamentações.

— Isto na caça, sucedem coisas que só vendo se acreditam. De uma vez, naquelas chapadas do Monte Grande que vão bater em Vale de Leitão, os cães ergueram uma lebre, muito adiante da linha de caçadores. Corria que parecia que tiniu asas nas patas, o bicho do diabo. Cada vez os cães lhe ficavam mais para trás, e quando ia chegando ao fim da ladeira, o João da Baroa larga-lhe um tiro, e a lebre fica estendida como uma pescada. O primeiro cão que lhe chega ao pé foi um podengo, atravessado de galgo, que tinha o António Joaquim, do correio, e que era um barra para trazer à mão.

— Foi um bago de chumbo desgarrado, que lhe deu num sítio mortal. Passou-se vistoria ao bicho, e qual chumbo nem qual carapuça.

— Tinha morrido de susto?

— Não, senhor; tinha morrido de esfalfamento, com os bofes arrebentados.


A última vez que vi o compadre Cara-Rota já ele deitara os oitenta para trás das costas mas andava com desembaraço, aprumado como um rapaz. Recordei, mentalmente, os afastados tempos em que ele ia trabalhar ás Mesas, ainda novo e eu criança, e pareceu-me vê-lo de machado nas unhas, falquejando à esquina do Monte, largando tudo, a inchó ou o machado, se ouvia tiros no Cabeço.

Era muito alegre, muito divertido, sempre de bom humor, como se a vida lhe corresse em todos os momentos fácil e vantajosa. Não era desordeiro, mas gostava de dar a sua castanha quando se lhe oferecia a ocasião.

De uma vez, logo no dia seguinte à feira de Santo António, apareceu no Monte um maltês, homem forte, de meia-idade, surdo-mudo de nascença.

Para estes desgraçados a esmola era sempre mais avultada, por expressa ordem da minha mãe. Dava-se-lhes umas sopas, se as pediam, e levavam sempre um pão e conduto, geralmente um queijinho ou azeitonas. — É uma grande infelicidade não ver, mas não ouvir nem falar é infelicidade ainda maior.

Quando a criada dava a esmola ao pobrezinho, o compadre Cara-Rota apareceu, em mangas de camisa, porque era assim que ele, mesmo no inverno, trabalhava no ofício. Viu o maltês, estacou, e como ele se dispusesse, recebida a esmola, a ir-se embora, desfechou-lhe esta pergunta:

— Há quanto tempo é que você é mudo?

O homem não se deu por achado, e a criada, rindo, comenta a pergunta.

— O Sr. Francisco sempre tem cada uma! Se o homem ouvisse, e fosse capaz de responder não era surdo-mudo… O compadre Cara-Rota, não se importando com as filosofias da rapariga, repetiu a pergunta:

— Há quanto tempo é que você é mudo?

Ouvindo altercação à porta do Monte, acudiu minha mãe, a inquirir do que se passava.

— Não é nada, senhora comadre. Este desgraçado perdeu a fala, e eu voulha restituir com uma untura de marmelo no lombo.

Palavras não eram ditas, deita a mão a uma vara que estava ali peito, menos grossa que um bordão, e vá de zurzir o maltês, como se batesse em centeio verde. A minha mãe, espavorida, queria acudir ao infeliz, mas o compadre Cara-Rota, não atendia os seus rogos, e o maltês levava e encolhia-se, queixando-se por gestos e por guinchos.

— Ah ele é isso! Não queres falar?… Espera que eu já te arranjo.

Sacou da algibeira uma navalha, que abriu dando três estalinhos, e como fizesse aceno de avançar para o homem, disposto a cravar-lha no fole das migas, o maltês caiu de joelhos, a pedir misericórdia. — Não me mate, pelo amor de Deus, que eu não fiz mal a ninguém.

— Ora esta! — dizia minha mãe, mal acreditando no que ouvia. — Quem havia de dizer…

— Dizia eu, senhora comadre, porque ainda ontem à noite vi este pardal numa barraca da feira, muito bêbado, ameaçando toda a gente, e desenrolando um palavreado que até envergonhava as pessoas.


Nos maus anos cerealíferos, todos os que eram capazes de perder uma noite, homens e mulheres, em romaria pelos Montes, saíam a cantar as janeiras, fazendo-se acompanhar dos miúdos pequenos, os que os tinham, para maior colheita.

Ou porque chovesse muito e as terras se encharcassem, afogando as sementes, ou porque chovesse pouco e as sementes murchassem, apenas salpicando a terra de manchas verdes punctiformes, quando o ano agrícola se mostrava assim, nada prometedor, dizia meu pai, nas vésperas do Ano Bom:

— Temos ano de Janeiras, a não ser que chova a cântaros.

Mesmo chovendo, e às vezes com um frio de bater o queixo, nos anos que se anunciavam maus, o gado a morrer de fome, a família sem trabalho, porque nem sequer havia erva nas searas, tornando necessária a monda, em anos tais, a concorrência de janeireiros era enorme, sobretudo não havendo barrancos a passar, que fossem cheios.

Os criados eram os primeiros a cantar as janeiras, à porta do Monte, e para eles a esmola era especial — pão alvo, chouriço para assar no espeto ou carne para uma friginada e vinho numa garrafa ou numa borracha, segundo o número.

Era quase certo que debutavam por esta cantiga:

Esta casa está caiada

Do telhado até ao chão;

Os senhores que nela moram

Deus lhes dê a salvação.

Também nós, eu e os meus irmãos, cantávamos as janeiras, e a minha mãe mandava-nos dar a esmola pelo postigo, como aos outros janeireiros, o que muito nos lisonjeava. Consistia a esmola em guloseimas, já divididas em porções, para evitar lutas fratricidas.

A gente de Messejana era a que chegava mais cedo, em ranchos, os homens enrolados nas suas mantas, as mulheres nas suas mantilhas, havendo geralmente em cada rancho uma cantadeira de fama, a Sofia, que era a mais pimpona de todas, a Bárbara Bonita, que por sinal era muito feia, mas trinava como um rouxinol… Que apitasse como os comboios.

A Sofia, que era poetisa a valer, repentista como o Bocage, não garganteava as habituais quadrinhas, de uma tão charra banalidade, a maior parte, que dificilmente se encontraria na grosseira urdidura de qualquer delas uma centelha de inspiração. Improvisava à porta dos Montes, de modo que cantava só, e isso fazia com que a esmola do seu rancho fosse mais avultada. No despique ninguém lhe ganhava, a cantar uma noite inteira, nos arraiais, às vezes tendo de bater-se ao mesmo tempo com dois e três cantadores de reputação concelhia, mestres na desgarrada.

Tenho pena de não ter escrito algumas das quadras e decimais que a Sofia arquitetava sobre mote, dizendo-as sem hesitação, como se as tirasse da memória. Instruída e educada, a Sofia de Messejana estou que marcaria na literatura feminina do nosso País um lugar de relevo e distinção.


A Musa popular alentejana é pouco imaginosa; falta-lhe geralmente elevação de pensamento; falta-lhe elegância na expressão; falta-lhe correção na forma. A inspirar os janeireiros, pelo menos os que iam cantar às Mezas, nunca entalhava na música arrastada dos seus cantares uma quadrinha que tivesse o recorte simples mas elegante do junquilho, a fragrância quase doce do mantrasto, a leveza pouco menos de imponderável da papoila. É ver por estas amostras:

Ó senhor lavrador

Vestido de saragoça;

Mande-me dar a esmola

Pela sua filha mais moça.

Quando eu aqui cheguei

Dei um tope num cortiço:

Logo o coração me disse

Que me dariam um chouriço.

Venho-lhe dar os bons anos

Que as boas festas não pude;

Venho a fim de saber

Novas da sua saúde.

O Sr. Manuel de Brito

Cordão de ouro no chapéu;

Quando vai para a igreja

Parece um anjo do céu.

Era pequeno o rol das cantigas janeireiras, de modo que o rancho que chegava, às vezes sem lhe alterar a ordem, repetia as do rancho que imediatamente o antecedera. Esta monotonia só era quebrada pela variedade das vozes, cada rancho formando um coro desafinado, em que seria difícil, senão impossível, uma classificação.

Se o frio era dos que enregelam, chegava-nos à chaminé, onde havia um lume que enchia de calor a casa toda, a tremura das cantadeiras, mal enroupadas, parecendo que o seu delgado fio de voz coalharia no ar, se não se calassem depressa.

Acudia minha mãe: — Vão levar a esmola, e digam que não cantem mais.

Obtinha sempre um grande sucesso o rancho que cantava os três do oriente — os três desorientes — diziam os janeireiros, lengalenga que eu sabia de cor, e que se me varreu, quase por completo, da memória. Começava assim:

Quem são os três cavaleiros

Que fazem sombra no mar?

São os três desorientes

Que a Jesus vêm buscar.

Não procuram por pousada

Nem onde o irão achar;

Procuram o Deus menino

Que nasceu para nos salvar.

Foram-no achar em Roma

Revestido no altar;

Missa nova quer dizer,

Missa nova quer cantar,

S. Pedro ajuda à missa,

S. João muda o missal.

O tio Rosa explicava que os três cavaleiros eram os três reis do Oriente, uma terra lá para os fins do mundo, os quais tendo notícia de que nascera Jesus, se puseram a caminho, para o adorarem. Como eram muito grandes, e montavam cavalos do tamanho de torres, faziam sombra no mar. Chegados à arramada onde Nossa Senhora dera à luz, aí souberam que o menino fora levado para Roma, porque Herodes era um grande malvado, e tinha dado ordens para o matarem. S. Pedro e S. João acompanhavam Jesus, e uma vez chegados a Roma perguntou-lhes o Papa o que desejavam. Vai então Jesus respondeu que desejava dizer missa na Igreja matriz, ao que o Papa anuiu, e como o sacristão tinha ido fazer um recado, S. Pedro e S. João ajudaram ao oficio divino. Veio Herodes a saber onde Jesus estava, e mandou lá buscá-lo, entregando-o aos judeus, que o levaram à presença de Pilatos, pedindo a sua morte. Pilatos disse-lhes que não havia motivo nem razão para semelhante feito, mas que se o quisessem matar, o matassem, que ele lavava daí as suas mãos. Foi o Senhor pregado numa cruz, entre dois ladrões, e ressuscitou ao terceiro dia depois da morte, para nos remir e salvar. Sucesso ainda maior alcançava o rancho que cantava a chamada oração das almas, lamúria fúnebre que era entoa tia muito lentamente, nenhuma voz excedendo o regime médio, e no coro predominando o baixo profundo, dando a impressão de vir a cantoria do interior das sepulturas, a coar-se por entre túmulos. Só me recordo do começo desta oração :

Acordai, ó acordai, Desse sono tão profundo; Que vos estão batendo à porta As almas do outro mundo.

Esta oração era sempre ouvida em religioso silêncio, e dizia meu pai que uns homens de Ervidel a cantavam tão bem e com tanto sentimento, que não era fácil ouvi-los sem chorar. As Janeiras! Até à meia-noite ainda estava tudo a pé, no Monte, para ouvir os janeireiros, contrariando o velho hábito, raramente interrompido, de ir tudo para a sossega, mal engolida a ceia, e engolia-se a ceia ao acender as luzes. O meu pai, nalgum dos filhos cabeceando, ordenava-lhe que se fosse deitar — na cama é que se dorme — o que punha logo o dorminhoco gazil como um furão. De vez em quando vinha uma roda de café, um copinho de águardente, um cálice de vinho abafado, para espertar, sendo estas bebidas acompanhadas de alguma trincadeira — bolos feitos naquele dia, nozes e figos comprados na feira de Castro, bolotas que tinham avelado numa alcofa, ao canto da chaminé, escolhidas umas no Poço Seco pelo compadre Rabino, escolhidas outras no Sabugueiro pelo compadre Bugado.

Amos e criados, destes os mais antigos na casa, os compadres, os afilhados, fraternizavam naquelas noites de festa; emparceiravam no jogo; comiam do mesmo prato; quase bebiam pelo mesmo copo; fumavam na mesma onça de tabaco. E não havia uma desatenção, uma falta de respeito, todos juntos e cada um. No seu lugar, a mesma alegria ingénua e franca iluminando todos os olhares, a mesma paz interior refletindo-se em todas as palavras e gestos.

Ficavam sempre dois criados de vela, até pela manhã, para darem as esmolas, e eu ficava com eles, rebelde ao sono, como se fosse atacado de espertina. Pela minha conta e risco — o risco era nenhum — cortava-se um chouriço já curado, e toca de o assar no espeto. Abria-se um pão alvo, pelo rebordo, e o pingo do chouriço ia embebendo o miolo, dando-lhe um gosto muito apreciável. A minha mãe, num descuido propositado, deixava algumas garrafas de vinho no armário aberto, e eu nenhuma hesitação tinha em ir buscar uma ou duas para que o pão e o chouriço não arranhassem as goelas dos meus convivas. La chamar alguns criados de quem era mais amigo, e durava o bródio enquanto havia de comer.

— A minha mãe é capaz de me ralhar…

— Ora! O Sr. Compadre diz que foram os ratos que beberam o vinho enquanto a gente estava a escutar os janeireiros…

Os dias que medeiam entre as Janeiras e os Reis passava-os eu num alvoroto, que me valia alguns puxões cie orelhas, pois nada ouvia do que me diziam, e nada fazia do que me mandavam fazer.

Nunca obtive licença para ir cantar as Janeiras ou os Reis à Bispa ou às Refróias. Montes próximos e de gente amiga, nem mesmo oferecendo-se o compadre Rosa, para ir à minha companhia, garantindo que muito antes da meia-noite estaríamos de volta. — Fiquem os senhores compadres descansados que não há de haver ovidade.

Morro com este desgosto, dos maiores da minha vida… De menino!


As Janeiras! Os Reis!

Poucos, muito poucos são os Montes em que ainda hoje se dá esmola aos janeireiros, e por isso mesmo, além de várias razões de outra ordem, são cada vez menos os janeireiros que passam uma noite de Monte em Monte, cantando aquelas tradicionais quadrinhas que o leitor já conhece, e outras de igual valor poético, que se me varreram da memória.

Os tempos andam tão mudados do que foram!

Eu sinto-me tão diferente do que fui!

Estou a evocar estas recordações numa noite de janeiras, de vento fustigante e frio alpino, e precisamente quando suspendo a pena e fecho os olhos para que seja mais perfeita a evocação, a Otília, minha sobrinha, gritame da porta do quarto, aos saltinhos, como uma rola na eira:

— Tio! O chá
está na mesa.

O chá, que naquelas eras, entre rurais pobres e abastados, só era tomado como remédio, para suar, e era de flores de sabugueiro!

Brito Camacho

As Janeiras!


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