Corria a noite de vinte e quatro de Dezembro, e dez horas acabavam de soar na freguesia de uma aldeia da província do Minho.
Era uma destas noites como as produz Dezembro nas províncias do Norte de Portugal; serena, mas fria de regelar: a geada caía a flocos em abundância.
De além das cumeadas da serrania, sobranceira à aldeia, lá começa a aparecer uma claridade alvacenta, como véu diáfano que se dilata, e que pouco a pouco envolve o baço fulgor das estrelas.
É a Lua que vai nascer.
A pálida e melancólica rainha da noite ergue a custo a cara, anuviada pelos gélidos vapores que o Inverno depositara nos cumes da serra. É como um espírito aéreo de Ossian, percorrendo em níveas vestes as montanhas de Morven.
Quão sublime é o nascer da Lua, quando a noite já vai adiantada! É nessa hora de tranquilidade profunda e meditação solene, que a alma, animada por essa centelha que ao mundo desferiu a Divindade — a poesia, solta voos temerários, sendo-lhe estreita a imensidade do espaço para dar largas aos pensamentos que inspira o astro melancólico da noite.
Sereno e modesto planeta, quanto simpatizo contigo! És o meu enlevo nas belas noites estivas, em que brilhas no nosso tão poético hemisfério, desferindo um olhar cheio de mistérios. Sem o querer, pelo teu aspeto acho-me embevecido, sem de ti desfitar. Olhando-te, minha alma parece desprender-se das suas ligações terrenas e voar pelo espaço, engolfando-se na deslumbrante cópia de maravilhas, que o silêncio imperturbável da noite nos patenteia, e que tu, como um facho inextinguível que luz entre o homem e Deus, iluminas e esclareces! Tu és como um fanal misterioso, que, nas horas em que tudo jaz adormecido, fazes resplandecer as páginas do livro da sabedoria eterna — a natureza!…
O nordeste começara de soprar rijo, varrendo com as suas asas da amplidão do espaço os ténues nevoeiros que a noite acumulara; e açoitando em rajadas a encosta da montanha, envergava os pinheirais, que, erguidos na lombada das colinas, se projetavam no horizonte como fantasmas negros que, ao som do vento, que, gemebundo, percorria pelos vales, dançassem danças grotescas e bárbaras.
A noite foi alimpando, pondo-se bela e clara com a saída da lua, que, já desassombrada de vapores no seio da atmosfera, pura e serena, fulgurava como broche de ouro no meio de um vasto manto de cetim. À sua claridade os objetos confusos e indistintos, pelas sombras da noite, tinham-se estremado e tornado percetíveis. No pendor da serra, quase a dependurar-se por entre os ramais verde-negro dos árvoredos frondosos, começara a surgir, alvejando ao luar, a aldeia, cujo campanário, ainda havia pouco, fizera soar dez horas.
Entre nós, gente da corte, dez horas é apenas o começo da noite: é a hora de dar entrada num baile; é a hora em que um peralta vai para o teatro; é a hora em que se faz a abertura de um sarau, segundo as prescrições do código do bom-tom; é, enfim, a hora destinada, nos ritos da tafularia, para se começar tudo o que respeita ao mundo elegante, depois que o Sol deixa de nos iluminar. Mas, no campo, dez horas é uma hora adiantada: é a hora em que um honrado e positivo lavrador tem já dormido o seu sono, e muito bem estirado; porque os habitantes do campo, como lapónios e pouco ilustrados que são — coitados! — preferem a luz de um belo sol, que os ilumine e lhes dê vigor e energia, à luz artificial de alguns resplandecentes lustres de gás; e por isso se deitam ao anoitecer, e erguem-se com a aurora, gozando do inexplicável espetáculo do acordar da natureza. São gostos. Pois fique cada qual com o seu, que eu, apesar das pinturas dos poetas e das descrições lisonjeiras da gente da província, nunca morri de amores por madrugar.
Prefiro antes que o sol me veja erguer a mim, do que eu o veja erguer a ele. Há nisto talvez até descortesia para com o rei dos astros; mas que querem? Uma madrugada, acompanhada do seu cortejo de gelos e calafrios, foi sempre para mim mais assunto de muito bocejo e espreguiçamento, do que de encantadoras e atrativas seduções. O mau gosto é de certo da minha parte; mas antes assim. Suporte-se ainda mesmo a reputação de sensaborão, contanto que não se troque uma cama, fofa e quente, por uma madrugada fria e áspera.
No campo, como íamos dizendo, dez horas, que são horas de tudo jazer já adormecido, nesta noite, porém, parecia ter exceção, a atentar bem na nossa aldeia, por cujas fisgas das portas e janelas de algumas habitações, bruxuleavam luzes, como pirilampos fulgurando num brejo, ouvindo-se, interrompido e intermitente de vez em quando, o ruído confuso de um vozear alegre, como cantares, ao que parece, de gente que festejava.
E alegrava-se, sim; porque esta era uma das noites de exceção por excelência para aquelas boas gentes: esta era a noite de 24 de Dezembro; era véspera do dia de Natal, em que tudo na província festeja, risonha, tange, canta, come e bebe, já se sabe, devotamente, depois de ter ido ouvir a missa do Galo. Esta era a razão da novidade que ocorria na aldeia, cujos habitantes já ansiosos e alegres suspiravam pela duodécima badalada do sino da freguesia, para envergarem capotes e gibões, e porem-se a caminho para a igreja.
De repente o sussurro de vozes, que era trazido ou levado pelas esfuziadas do vento que assobiava pelos estevais, dobrando as piteiras dos valados, foi cortado pelos latidos agudos de um cão, o qual parecia estar dentro de uma casa de melhor aparência, que ficava afastada da aldeia, para a baixa da serra.
Os latidos do cão vinham com efeito do interior desta casa; e o motivo parecia a aproximação de um vulto negro, como de homem embuçado, que saíra detrás de um grupo de choupos, e se acercara da porta da casa, como pondo-se à escuta. O ladrar do cão ao princípio não atraiu o reparo da gente que lá dentro andava acesa em festas; mas tanto que este avançou à porta, raspando nela, como que entrevendo o vulto que estava de fora, que uma voz de homem bradou de dentro:
— Ó Francisco, vê porque ladra aquele cão.
Ao soar da voz, o embuçado desaferrou da porta, e correu a esconder-se com os choupos.
A porta abriu-se; e um homem, tendo mão num formidável rafeiro, que, sacudindo a cauda, tudo era querer partir para o lado onde o faro lhe denunciava o estranho, apareceu, deitando a cabeça de fora.
— Ora o que há de ser! — diz o rapaz — não é nada: é o Diamante, que sentiu bulir a porta com o vento, e por isso ladrou.
— Qual carapuça! — exclamou o outro homem de dentro.
— Se ele ladra, é porque anda por aí gente.
O Diamante não se engana assim. Anda gente, e gente a quem ele tem gana:
essa também eu te juro.
— Eu cá não enxergo vivalma, tio Jerónimo — replicou Francisco. — Ouço o vento que assobia nos valados, e mais nada. Pois olhe que a noite está clara como de dia.
— É verdade; que bela noite! — exclamou uma voz feminina, sonora e meiga. — Parece uma noite de Estio; ora que nem de propósito se pôs assim. A esta fala, o cão soltou-se das mãos do rapaz, e voltou-se para a recémchegada, que era uma camponesa, jovem e gentil, segundo da parte de fora se podia ver, e se pôs a lambê-la e a afagá-la.
— Acomoda-te, Diamante: tens andado hoje tão inquieto! Terá fome, talvez. Vai dar-lhe de comer, Francisco, anda — disse ela desenvencilhando-se do cão, e indo para dentro.
Neste comenos, os choupos tremeram, e Diamante, pilhando Francisco desapercebido, avançou ladrando com a fúria de um leão. Nisto as árvores buliram mais, e uma pancada surda, como de arma que erra fogo, fez-se ouvir.
— Que é isso?… Foge, Diamante, que te matam! — grita o jovem, correndo a desviar o cão.
A esta exclamação do criado, toda a gente da casa chegou à porta, alvoroçada.
— Quem é que me quer matar o cão? — bradou um homem que vinha à frente, adiantando-se, e brandindo um varapau com uma choupa numa das pontas.
A resposta foi o lampejo de escorva que ardeu, sem disparar a arma, entre os choupos.
— Tira-te, António, que foi espingarda que dispararam dali — grita a camponesa, que já tinha aparecido, empecendo ao homem do varapau de prosseguir na direção das árvores; mas este, desembaraçando-se dela, replicoulhe com brandura:
— Não tenhas medo, Emília. Sempre quero ver quem é o gatuno, que assim me quer matar o cão: hei de lhe arrancar as barbas, uma por uma!
O homem que assim falava era um rapaz de vinte e oito anos para trinta:
alto, robusto e bem posto. Ainda que não fosse belo, o seu todo era simpático, e tinha umas maneiras em que se revelava a franqueza aldeã, espontânea e incuidosa, mas acompanhada da resolução do homem decidido.
Com ele tinham saído mais alguns rapazes camponeses, uns poucos de lapónios, que eram os jovens da aldeia, e um homem já de idade avançada. — Que fazes? — gritou este, dirigindo-se a António. — Não te arrisques assim. Sabe-se lá o que será!
— Ora o que há de ser? — retrucou o jovem aldeão. — Algum ratoneiro, que está à espreita que vamos para a freguesia, para nos entrar em casa.
— Dizes bem, nem é outra coisa — acrescenta o velho, dando alguns passos para o meio da viela.
— Sim, mas deixem-se estar — insistiu Emília, segurando pelo braço António.
— Qual! Hei de ver-lhe a cara — ateimou este, adiantando-se para os choupos e mais alguns aldeões. Mas ainda não tinha chegado próximo, quando uma sombra se escoou por detrás das árvores, e se viu distintamente o vulto de um homem de capote escuro saltar o valado com a ligeireza de um gamo, e desaparecer súbito.
— A ele, Diamante, vai-te a ele! — brada António, arremessando o cajado ao vulto que fugia, e correndo após ele com a impetuosidade de um tigre. O cão, enraivado à voz do dono, correu com a velocidade do raio, galgando o valado de um pulo. Quase todos os homens avançaram para o lado por onde fora António, e em breve desapareceram também.
— Vão-me buscar a minha caçadeira! — bradou o velho para os jovens, que estavam espavoridos e estupefactos, enquanto que as mulheres rompiam em alaridos.
— Vocês não ouvem, gente do diabo? Vão-me buscar a minha espingarda, ou não? — disse o velho agastado.
— Aonde queres tu ir, Jerónimo? Tu enlouqueceste?… Tu perdeste a cabeça?… — grita uma velha, de voz rouquenha e gritadeira, excessivamente gorda, mas desembaraçada e resoluta, saindo da mesma casa, e travando com o braço o tio jerónimo, a quem o risco da aventura estimulava ainda os brios de rapaz.
O empuxão da velha, forte como a abalroação de uma charrua dinamarquesa, deteve nos seus ímpetos o tio Jerónimo.
— Aonde quero eu ir? — replica ele. — Quero saber quem é o patife que, escondido naquelas moitas, teve a fraqueza de desfechar à queima-roupa sobre o bom do nosso António.
— Olhe, minha mãe, indo o pai armado, não tem dúvida… — ia dizendo Emília, quando a velha, arregalando os olhos, com as faces acesas em ira e as palavras atropelando-se pela cólera, lhe bradou num tom atroador:
— Que dizes tu, tola?… Tens medo que te bulam no machacaz, e por isso queres meter também o pai na alhada? Vai tu. Tu não me fazes falta; ele sim. Que me dizem à rapariga!
Quer que lhe guardem o bonifrate! Que se defenda ele. Já tem idade para isso. E que me importa a mim o cão do António?… É o que faltam são cães. E, para além do mais, o cão não é nosso.
— Mas é como se o fora, porque é de António, e é muito seu estimado — respondeu Emília com interesse.
— E que tenho eu que ele o estime, ou não? — continua a velha, cada vez mais incendiada, e dispondo-se a arremeter para Emília. — O caso é outro — atalhou Jerónimo, metendo-se de permeio.
— Agora não se trata de cães, nem meios cães; o caso é mais sério. Trata-se de saber quem foi o melro que estava posto à capa detrás dos choupos, e que depois se esgueirou lá para a quebrada da serra. Não era para matar um cão que ele ali estava. Este é que é o caso.
— E verdade; este é que é o caso — acudiu Emília, fazendo coro com o pai.
— Será esse o caso, senhora espevitada; mas se o cão não estivesse a farejar e a arranhar na porta, já não era nada disto — retorquiu a velha, que era uma espécie de deputado de oposição sistemática.
— Eles lá vêm! Eles lá vêm! — disseram os jovens que tinham ficado.
Efetivamente assim era.
António chegou, e os mais camponeses e criados que o tinham seguido, todos cansados e esbaforidos.
— Então que era? — foi a pergunta que saiu da boca de todos.
— O que era?… Era um homem — respondeu António com ar taciturno —; mas agora quem!… Aí é que está o busílis. Vão lá perguntar-lho.
— Vão lá perguntar-lho!!… Ora essa! Pois não viram, indo-lhe quase na peugada?!… — exclamou Catarina pasmada.
— Qual! — disse António com um sorriso sardónico. — Parece que ia montado no diabo! Pois Diamante galga terreno, mas não foi para o seu dente podê-lo apanhar.
— E que direção tomou? — pergunta o tio Jerónimo, tomado de pasmo.
— Atravessou as terras do moinho: galgou a lombada da serra, e depois meteu-se na vinha do André da Charneca. Daí por diante ninguém mais l he pôs a vista cm cima.
Isto respondeu um camponês, porque António estava entregue a pensamentos profundos, como que alheio do que se passava.
— Está bom; como não aconteceu desgraça, Deus louvado, ainda o caso foi bem. Ora andem, agora vamos para dentro — diz Catarina.
— Parece que querem ficar aqui… Não pensem mais nisso. Isso era algum larápio, ou, agora me lembra, talvez fosse o abegão em que nos falou a Josefa da Horta; porque, bem pensado, estarem-lhe aqui quase com as mãos em cima, e ninguém lhe poder ser bom, manda obra do demo.
Eu te arrenego, Satanás! — exclamou a velha fazendo o sinal da cruz. — Então isto já é de mais: vamos para dentro, ou não?… Parece que ficaram todos apegados ao chão.
E assim era. A estranheza da aventura tinha infundido o espanto em todos.
António, com os olhos pregados no chão, encostado ao varapau, e verrumando a terra com ele, parecia entregue a um pensar penoso; ou, para melhor dizer, lidava para combinar factos que a memória lhe esquivava.
Um pressentimento indecifrável lhe escurecia as ideias, povoando-lhe de imagens tristes todo o seu imaginar. O aparecimento do estranho acordava -lhe pensamentos confusos, mas através dos quais lhe parecia ver despontar lembranças, que bem amargamente lhe tinham dilacerado a alma noutra época. Emília chegara-se para ele, e mostrava que as mesmas sensações a atenuavam; estava triste e pensativa como ele.
O tio Jerónimo também pensava, mas o seu pensamento era outro.
Reflexões nascidas das circunstâncias singulares do acontecimento, e influídas pela superstição, feição proeminente do carácter camponês, lhe faziam encarar o ocorrido pelo lado maravilhoso. Um lobisomem não se atrevia a afirmar que fosse o desconhecido, porque a configuração era humana, e não assentava as quatro patas no chão; mas coisa boa não a reputava ele de certo.
Assim estavam todos, quando um sonoro repique de sinos, travando os ares e repercutindo-se em todos os montes e vales vizinhos, acordou os ecos da serrania, e arrancou os vales desta espécie de letargo.
— Ai! Que já toca à missa, e nós aqui! — exclamou Catarina, saltando como tocada da pilha voltaica. — É verdade — dizem todos em chusma.
— Toca para a missa, rapaziada — bradou Jerónimo. — Deixemos os maus pensamentos. Não nos lembremos mais disto. O que for soará. Anda, António: pareces uma estátua.
— Eu cá não vou à missa — resmungou António.
— Quê?!… Tu não vais à missa?… Ora essa tinha que ver. Já para a freguesia, meu pachola! — brada Catarina dando-lhe uma palmada nas costas,capaz de fazer aluir uma torre.
— Ora era o que faltava, se tu não ias à missa do Galo! Vai-te daí, tolo, que estás a parafusar? Pareces-me um piegas. Já a ninguém lembra tal coisa, e ainda tu estás com os olhos cravados no chão, que pareces um estafermo.
Anda, vamos daí.
— Anda, António, disse Emília em tom meigo. Então não queres ir connosco à missa do galo?
— Pois vamos lá — respondeu enfim ele, que a esta voz pareceu desagarrar-se do seu ruminar.
— Toca a aprontar tudo, rapazes, para irmos para a missa! — grita o tio Jerónimo; o que foi respondido pela frase geral:
— Vamos para a missa.
Toda a família entrou para dentro da casa, e depois de alguns momentos saíram todos, mas já amantalhados e encapotados, e tomaram o caminho da freguesia.
— Fecha bem a porta — disse Catarina a um dos jovens que dava volta à chave, visto que temos quem nos ronde a casa. O rancho alongou-se.
As vozes, em práticas festivas, por entre as quais surdiam as gargalhadas esganiçadas e estridentes das raparigas, foram ressoando ao longe por algum tempo, deixando de se distinguir, e formando por último um alarido confuso, que se perdia ou multiplicava à proporção das anfractuosidades da encosta que iam correndo.
Em breve não se ouviu já senão o som surdo e compassado dos tamancos dos jovens nas calçadas das quelhas da aldeia: este mesmo ruído extinguiu-se pouco a pouco; mas foi substituído por outro, semelhante à restolhada que fazem as folhas secas pisadas.
Eram passos de alguém que se aproximava cauteloso.
O vulto negro do embuçado apareceu de novo; mas desta vez vinha da traseira da casa; e cosendo-se com a parede dela, tomou também o caminho da freguesia, porém sempre esquivando-se, retraindo-se ou cosendo-se com a sombra, até que desapareceu de todo.
A missa do Galo é uma das boas instituições religiosas do catolicismo, bem como todas as instituições que são propriamente nacionais, e em que o povo pode tomar o seu quinhão de alegria, sem sair do seu verdadeiro carácter. São estas festividades o relevo, ou esmalte da monótona vida das classes laboriosas: é por elas que o homem do povo mede os horizontes da sua existência, que marca os capítulos de ventura da sua história íntima, os quais firma e consagra com as afeições sinceras da sua alma, tomando estas épocas como balizas ou marcos miliários que avultam no caminho dos anos decorridos ou por decorrer, fazendo-lhes anexar, aos já passados, a lembrança penosa das suas afeições, ou das saudades que o coração desflorara sobre a memória de um ente querido; aos futuros um desejo de bem ou uma esperança que poucas vezes a sorte enflora.
Estas e outras festividades, umas originais da religião, outras derivadas de usanças e tradições imemoriais, são as verdadeiras flores do mundo ideal de qualquer povo; são as circunstâncias que concorrem para lhe dar um carácter próprio, uma fisionomia particular, e um aspeto distinto; são as origens que lhe suscitam as crenças, as usanças e tradições de que matiza, de que inspira e anima o seu viver íntimo e as suas convicções morais e religiosas.
Delas nascem formosas lendas, em que a poesia da superstição popular engrandece o culto religioso, firmando-o com a fé, na memória dos velhos, e com o mistério, na imaginação juvenil. Os hábitos e crenças do povo recebem destes factos, consagrados pela igreja, ou solenizados pela tradição, um distintivo, que importa conservar e perpetuar, porque nisso é que residem as suas feições nacionais.
A literatura, a verdadeira expressão da sociedade, na concisa frase de Bonald, bebe nestas fontes as suas mais nativas c puras inspirações. A unidade e conservação do carácter moral de um povo subsistem nas suas convicções religiosas e populares. Tirai a qualquer nação as suas crenças e superstições, seus usos c costumes, e vereis o que fica. Um conjunto de homens de um viver excêntrico, positivo, e bisonho, sem mundo ideal, que brilhe e ria à fantasia, sem perspetivas de atrativo encanto que inspirem a alma e a convidem a largos voos por horizontes sem fim. Seria a aridez moral, sem uma saudade, mas também sem uma esperança que, vicejante e virente, reflorisse perpetuamente voltada para o futuro dos nossos desejos.
É por estas razões que, se despirdes os anos das suas galas c louçanias, as lançardes tudo no olvido, e desprezardes tais práticas e costumes, fica a existência social reduzida a uma série de dias, insuportavelmente uniformes,insípidos, monótonos, estirados, apenas preenchidos de fadigas e trabalhos, e distintos por um terramoto, por um águaceiro ou por um eclipse.
Voltemos agora à nossa aldeia.
O repique dos sinos, que fora como toque de rebate para a família do bom do nosso tio Jerónimo, tivera a virtude da voz do anjo, bradando das alturas aos adormecidos pastores de Belém: Erguei-vos, que nasceu o Filho de Deus.
Todos os habitantes da aldeia se puseram em movimento. Por toda a parte começaram a aparecer e desaparecer luzinhas, e o ruído de fechar e abrir portas fez-se ouvir em todas as habitações. Em breve os aldeões, entre risadas e festas, com a alegria e a esperança no íntimo, o sorriso nos lábios e o fervor no coração, se dirigiram à freguesia.
Pudéramos agora narrar mil episódios ocorridos, e peculiares a estas tão almejadas noites de Natal: mas não o faremos. A discrição cerra-nos a boca; e a pena, mais discreta que a própria discrição, pára, recusando-se à tarefa de perscrutar amores, e analisar muitas cenas de picante sainete cómico.
Continue o mistério a envolver todas essas anedotas, historietas e lances, em que todos, mais ou menos, temos figurado de heróis. Calemos por interesse próprio. Agora tomemos o fio da narração de mais alto, para boa inteligência dela, começando por dizer quem era o tio Jerónimo, e a sua família.
O nosso tio Jerónimo era o que se pode chamar um verdadeiro tipo dos nossos aldeões de província. Era um homem que tinha o peito franco e a bolsa descerrada para todos; que só via caras e não corações; que acreditava nas palavras sem descortinar interiores. Mas sentido com ele em não lhe pregar a primeira, que então ia tudo em vaza-barris, e não lhe pregavam a segunda; porque ainda que lhe fossem depois pregar evangelhos, era malhar em ferro frio, pois que ele seguia o adágio: cesteiro que faz um cesto, faz um cento.
Na sua juventude, o tio Jerónimo fora moleiro, porque a perda dos seus pais, sendo ainda pequeno, o obrigou a tomar este rumo: porém, pela morte do padrinho, que era o lar que ele no presente possuía e com quem habitava, ficaram-lhe umas vinhas e umas terras de pão, que se estendiam por toda a serra do lado, que entestava o nascente. Já se vê que senhor de tão rica propriedade, o nosso tio Jerónimo tratou de se estabelecer e de tomar estado. Efetivamente fez-se lavrador, e chegou em pouco a ser o mais abastado do sítio. Quanto a estado, Jerónimo já andava de amores, havia tempo, com Catarina, filha de um carpinteiro de carros da aldeia; o que não era bem olhado pelo pai da rapariga, que não queria que a sua Catarina casasse com um rapaz de mulas, como ele chamava a Jerónimo. Todavia tanto que este, por morte do padrinho, tomou posse dos bens, o negócio mudou de face, e o rapaz de mulas começou a ser tratado com urbanidade pelo futuro sogro. Em fim, o casamento efetuou-se; e depois de dois anos, o amor e esperanças dos dois esposos foram coroados pelo nascimento de uma filha, a quem puseram o nome de Emília, por ser o da mãe de Catarina, sendo padrinho de batismo o padre da aldeia.
Emília logo desde criança foi o enlevo do seu pai; e conquanto sua mãe, na aparência, a tratasse de rompante, ela fazia o que queria de Catarina; porque Catarina tinha o terrível defeito de estar em oposição com todos; de pôr tudo a ferro e fogo na fazendo encanzinar; de não suportar contrariedade de espécie alguma sem romper em berreiros atroadores, realçados por um gesticular petulante e ameaçador; mas ao cabo de tudo, a pobre mulher era uma pomba sem fel, e afadigava-se por fazer bem a todos, não querendo mal a ninguém.
Os tempos correram, e Emília foi crescendo em gentileza e formosura.
Todos na aldeia simpatizavam com ela: os velhos viam nela um anjo de paz; a indigência contemplava-a como o seu esteio; e a juventude adorava-a vendo nela a sua esperança; enfim chegou a tanto o entusiasmo dos jovens aldeões, que lhe puseram o nome de Flor da Serra. Emília, porém, pagava com gratidão estas demonstrações ternas, mas seu peito ainda não palpitava de amor.
Entre os jovens da terra, que a requestavam, havia um chamado Pedro, filho do cirurgião da aldeia, o qual mais se fazia notar pela insistência dos seus extremos e declarações; e que lhe parecia impossível que a indiferença de Emília o compreendesse, porque se julgava com direito ao seu amor em consequência de ser filho de uma das notabilidades da terra.
Este Pedro era um rapaz de carácter impetuoso e vingativo; de um temperamento ardente e irascível. Ele calava no fundo da alma o desprezo com que Emília o tratava; mas quem nele atentasse perceberia, pelo torvo do seu aspeto e maneiras retraídas, que naquele coração, a par de muito amor, existia outro sentimento, não menos forte, que não era a resignação; sentimento que, à medida que o seu amor lhe era repulsado pela indiferença constante da filha de Jerónimo, recrescia e se ateava de dia para dia.
O peitode Pedro era comparável a um vulcão; aguardava só pela boca predestinada para rebentar em explosão.
Um acontecimento veio livrar Emília deste amante, que ela mais temia que prezava. A obrigação em que estava a aldeia de dar um homem para o recrutamento, fez com que Pedro fosse sorteado, e que nele caísse a sorte; sendo por conseguinte obrigado a ausentar-se da terra, e ir para o regimento que lhe foi destinado.
Passados dois anos, apareceu de novo na aldeia, já feito segundo sargento; e sem consultar Emília, atreveu-se a pedi-la aos seus pais. Catarina, deslumbrada pelo posto do jovem militar, esteve quase tentada a dar o seu assentimento; mas Jerónimo quis que a sua filha fosse ouvida, visto que o negócio lhe dizia diretamente respeito; esta recusou imediatamente. O novo militar, respirando mais raiva do que amor, despediu-se da família; e apertando a mão de Emília, disse-lhe com um acento terrível estas palavras, que sempre lhe ficaram gravadas na memória: Emília, pensa bem quanto pode um amor desprezado; e fica certa que Pedro, assim como te soube amar, também saberá vingar-se.
Assim iam as coisas, quando aconteceu morrer um irmão a Jerónimo na província da Beira. Este irmão era um lavrador abastado e solteiro, mas que tinha um rapaz na sua companhia, que criara de pequeno, e a quem queria como a um filho. As más-línguas asseveravam que ele verdadeiramente o era, o que nós não sabemos ao certo; o que sabemos é que o bom velho o chamou à hora da sua morte, e lhe disse:
— António — que assim se chamava o rapaz —, tanto que eu feche os olhos, trata de pôr tudo que me pertence em arranjo; e depois irás procurar meu irmão Jerónimo, que tu aqui já viste por várias vezes, e lhe entregarás um maço de papéis, que está dentro daquele bufete, e esta carta. O meu irmão é um homem honrado; tu tens sido sempre bom rapaz: creio que não hás de ficar mal com ele.
No dia seguinte o bom do homem morreu; e António, depois de chorar sinceramente a sua morte, fez as suas disposições, e pôs-se a caminho para a aldeia do tio Jerónimo, ao qual se apresentou. Este recebeu António como o seu bom natural lho pedia; e tendo mutuamente lamentado, um a perda de um irmão, outro a de um homem de quem recebera os extremos de pai, Jerónimo leu a carta e os restantes papéis, dizendo depois:
— E a ideia que ele sempre teve; ela não é má; o caso está que não fique só em desejos!
— E porque há de ficar só em desejos, tio Jerónimo? — pergunta António, sem saber de que se tratava —; se é uma ideia boa, e é, para além do mais, do seu irmão, que nos há de empecer de a levar avante?
— O tempo te dará a resposta, meu António —, volveu Jerónimo. — Por enquanto contenta-te de saber que ficas na nossa companhia, que não podes ficar melhor, porque neste particular não hás de sentir a falta do meu irmão.
António, que efetivamente era um bom rapaz, esteve por tudo; e em breve, pelas suas qualidades estimáveis, granjeou a estima de toda a família. Todavia, António, decorrido tempo, começou a andar de modo preocupado e cabisbaixo. Todos o estranhavam; ele que era tão jovial e alegre; que sempre fora o primeiro nas danças da aldeia, e o mais afamado improvisador ao desafio! E para que lhe havia de dar? Para andar desviado da mais gente, como ovelha tresmalhada; ou para se ir sentar ao pé do poço que estava junto do moinho do tio Jerónimo, e aí levar horas esquecidas a pensar, de olhos fitos num rosal, para onde Emília, ao pôr-do-sol, costumava ir refocilar da lida do dia.
Uma tarde, em que António estava no seu posto do costume, mais embevecido do que nunca no seu pensamento profundo, foi despertado de súbito por uma pequena pancada no ombro; virou-se, e deu com Emília, que com um papel na mão, entre sorrindo-se, lhe disse:
— Estás sempre tão pensativo, António. A modo que dantes não eras tão triste. Isso são por certo saudades da tua terra, não é assim?
— Saudades? — retorquiu António, olhando-a com prazer.
— De quem as hei de eu ter, a não ser daquele que me tratou sempre como pai?
— Não; essas saudades, que te trazem tão pesaroso, não são de gente morta — disse Emília com malignidade.
— Pois de outrem não as tenho — respondeu António com decisão.
— Então é outro sentimento que te consome; porque, se fosse saudade do meu tio, devia diminuir com o tempo, que tudo gasta, e não aumentar; salvo se cá em casa te quisessem mal; mas tu és tão bem tratado como eu; não é assim?
— Oh! Por certo.
— Então é outro motivo.
— E bem diverso.
— Bem diverso?… — replica Emília com curiosidade. — Então porque te não abres connosco, António? Não seremos nós capazes de te guardar um segredo, e de te minorar qualquer mal, quando esteja na nossa mão?
António pareceu lutar consigo mesmo; entreabriu os lábios, … Emília quase que entreviu o que nele se passava; e com um tom meigo e gesto afável, lhe disse:
— Ora diz, António, diz o que tens.
— O que é, sabe-lo tu melhor que ninguém — disse ele por fim, como arrancando a si uma confissão, que lhe enleava a alma.
— Eu?! — exclama a ingénua camponesa maravilhada. — Se nunca ninguém mo disse; tu também nunca mo disseste, como o hei de eu saber?
— Diz-to a minha perturbação; dizem-to os meus olhos; diz-to esse próprio papel, que tens na mão; e tenho-to eu dito muitas vezes, pelas minhas maneiras e palavras; tu é que não me queres entender — clamou António com energia, por fim, erguendo-se.
— Pois foste tu que escreveste este papel? — perguntou Emília, sorrindo.
— Fui sim — respondeu o jovem entusiasmado.
— E que diz ele — atalhou uma voz, dentre o árvoredo próximo, que se conheceu logo ser a do tio Jerónimo, o qual apareceu de súbito entre os dois jovens camponeses, lançando mão do papel, e lendo o que se segue:
De entre as rosas do rosal
És Emília, a mais formosa;
Respiras o seu perfume,
És como elas viçosa.
Quem dera poder colher-te
Já que o meu peito ferido
De tua negra esquivança
A ti já está rendido.
— Cáspite! Mais claro só água —, acrescentou Jerónimo, depois de haver lido, olhando para os dois com uma expressão galhofeira. — Uma declaração de amor, e em verso magnífico!… Então onde achaste tu este papel, Emília?
— pergunta-lhe ele com um sorriso sardónico.
António e Emília, conquanto soubessem que Jerónimo não era pessoa capaz de supor mal deles, porque a fundo conhecia a probidade de um e a virtude da outra, no primeiro instante ficaram estupefactos e corridos de se verem apanhados num lance inteiramente novo para eles.
— Então não me respondes, Emília? — repetiu o velho. — Estás com os olhos cravados no chão, e vermelha como uma romã. Achar um papel não é crime. Em que lugar o achaste, diz?
— Naquele rosal, onde me costumo sentar às tardes — respondeu por fim a bela camponesa, sem erguer a vista.
— E foste tu que o escreveste, António? — continuou Jerónimo.
— Fui, tio Jerónimo — acudiu o jovem com resolução. O velho, a esta afirmativa, rompe numa gargalhada estrondosa; os dois ficaram cheios de pasmo; mas ele os tirou deste embaraço, falando assim a António:
— Não te disse eu, que a ideia do meu irmão havia de ser o tempo que ta revelasse, hein?
— Assim é, tio Jerónimo — respondeu aquele, quase adivinhando já.
— Pois aí está o tempo, que ta revelou. Os meus filhos — continuou o bom do aldeão, estendendo-lhes a mão — vocês estimam-se, e não hei de ser eu, nem tão-pouco Catarina, que levemos a mal isso. O meu irmão, que para ti foi pai — prosseguiu ele virando-se para António que o ouvia absorto —,assim o desejava. Ele não quis prejudicar a amizade, nem o parentesco; porque, fazendo-te seu herdeiro, era eu lesado; não dispondo as coisas ao teu favor, mal terminava a sua amizade para contigo, pois te deixava ao deus -dará: assim combinou tudo, desejando que vocês se unissem, porque era a única maneira de tudo ficar em casa. Eu, porém, é que não quis que isso se fizesse à virga-férrea; porque, ainda que se diz, que o casamento e a mortalha no céu se talha, eu cá digo que é uma coisa que deve ser muito da livre vontade de cada um; e por isso quis espreitar primeiro a sua inclinação. Agora já sei qual é.
Confesso que fiz um papel avesso ao meu génio, e feio, em estar à escuta por detrás daquelas árvores; mas como foi para bom fim, não me arrependo. Ora, pois, meus filhos, alegrem-se que brevemente serão um do outro.
Emília e António saltaram ao pescoço do velho aos abraços, na maior efusão de ternura, a que ele correspondeu com afeto, acabando assim este colóquio. Em seguida foram todos dali dar parte do acontecido a Catarina, que, desta vez, não tez oposição.
Mas eis que os aldeões já vêm saindo da freguesia. Pois quê! Acabaria já a missa do Galo? Parece impossível. Ou o padre a disse muito depressa, ou nós nos demorámos excessivamente a esmiuçar os particulares da família do nosso tio Jerónimo. Há de ser uma das coisas, porque efetivamente os camponeses já enchem as quelhas da aldeia, e clareiras da serra, em demanda das suas casas, ledos e ansiosos por se irem lançar à consoada que os aguarda.
Estamos numa vasta quadra, coberta de telha vã, a que o pai de Emília tem concedido a honra cumulativa de sala, antessala, câmara, casa de jantar e saleta de espera. A um lado vê-se uma ampla lareira, com um bom fogo, onde arde, crepitando em estalidos intermitentes, o cepo-do-natal.
O cepo-do-natal é uma antiga e devota usança adotada pelos povos de algumas das nossas províncias: e não é só nossa, porque Christien, no seu estudo crítico sobre os costumes dos caledónios, diz que os antigos escoceses queimavam, em todas as suas festas, um grande carvalho, a que chamavam o tronco-da-festa.
Em Portugal, esta usança pratica-se da maneira seguinte.
Pelas vésperas do Natal, os lavradores abastados e devotos mandam cortar do pinheiro mais virente e robusto, que avulta nos seus pinheirais, um tronco, que é solene e festivamente trazido à sua morada, e depositado sobre a lareira.
Na noite do Natal acende-se e arde até pela manhã, guardando-se devotamente o que escapa das chamas; pois, segundo creem os bons camponeses, tem o condão de afugentar os raios e preservar deles, e muitas outras miríficas propriedades e virtudes, como a palma benta, as campainhas de Roma e os círios das Endoenças.
O cepo-do-natal, que ardia sobre a lareira do tio Jerónimo, havia-o cortado o António, na véspera, de um ingente e frondoso pinheiro, que altivo campeava na assomada da serra, à sombra do qual muitas vezes o mesmo António se sentara com a sua querida Emília. Tinha sido o confidente dos seus amores; era bem que assistisse às suas bodas. A rapaziada da aldeia havia-o ajudado a trazer até ali, o que para ela fora grande contentamento; e a boa tia Catarina já se achava abarbada de pedidos, feitos pelas aldeãs, que queriam que o ramo milagroso se repartisse por elas, à laia de santo-lenho, porque estavam quase certas de que o tronco misterioso, que fora guarida de amores, sacrário de segredos de ternura, e agora cepo-do-natal, teria mais virtude ainda de atrair corações, do que de afugentar raios.
Mas ponhamos de banda os desejos femininos da aldeia, e continuemos o esboço da casa do velho Jerónimo.
Em roda da lareira está o bom do velho, alegre em tecer apoteoses aos passados tempos, com o padre da aldeia, ancião respeitável, querido de todos pelos dotes do seu carácter verdadeiramente apostólico, e o boticário da terra, a quem o dono da casa havia convidado para fazerem a meia-noite com ele, como pessoas muito da sua particular estima. Junto deles vê-se Diamante estirado, aquecendo-se ao calor da lareira, seguindo com os olhos os menores gestos dos três; e ora espetando as orelhas, ora açoutando as ancas com a cauda, resmoneia, olhando de lado o boticário, criatura com quem embirra figadalmente. Do teto pende um lampião de ferro, projetando uma claridade vacilante e baça em todo o recinto, que está apinhado de raparigas da aldeia, muito guapas e garridas, com as suas galas e donaires estreados de novo; e da flor dos jovens aldeões, amigos de António, com quem travam práticas festivas, brincam, chacoteiam e riem, formando diversos grupos, os quais, exagerados pelos lampejos intermitentes da lareira, que, ora aclarando a casa toda, os diminui como pigmeus, ora, quase extinguindo-se os aumenta, tomam formas rasgadas, descomunais, grotescas e fantásticas.
A alegria transuda nos rostos de todos; mas uma alegria franca e sincera, sem retração nem embaimentos. Cada boca é um intérprete de alma; cada olhar um reflexo de sensações íntimas; cada palavra a manifestação singela de um pensamento puro; e essas expressões, conquanto enérgicas, veementes e até mesmo rudes, são, contudo, ingénuas e chãs, como a existência simples e laboriosa daquelas pobres gentes. Pode-se dizer que a cena que se passa em casa do tio Jerónimo é um verdadeiro episódio da alegre e honrada vida campestre, com toda a sua aparência tosca, simples, lhana, e primitiva, mas com o verdadeiro fundo que distingue um entretenimento desta ordem — a sinceridade, de um sarau hipócrita de gente palaciana. Enfim, é um quadro como nunca o produzira o pincel flamengo nas suas inspirações mais naturais e animadas da vida patriarcal dos campos. Teniers enriquecera ali a fantasia de episódios, que só a existência, compreendida nos seus acidentes, pode revelar; e Hogarth alegrara-se por poder reproduzir com a mesma vida e colorido o conjunto que lhe se oferecia à vista.
Este contentamento, porém, já de si tão buliçoso e expansivo, era ainda mais atiçado pela substanciosa consoada, que fumegava em cima de uma grande banca, a um canto da casa, para a qual olhava de vez em quando, com vistas ávidas, o boticário, mais forte na gastromania do que na farmácia, e que, ao cabo de muito pensar, tinha decidido para si que o primeiro e mais cabal princípio higiénico era comer bem, e sobretudo à custa alheia. Catarina, pelo seu lado, não cabia em si de contente; o que ela demonstrava pela maneira, nada equívoca, de variados e infindos berreiros, dirigidos em todos os tons, desde o mais roufenho até ao mais gritadeiro e espevitado, contra os maloios dos criados, que a faziam levar da breca por desazados e broncos. António, já esquecido da aparição do desconhecido, estava também entregue à geral festa: só Emília lidava por simular rosto prazenteiro; mas conhecia-se que dentro a ralava pesar, que ela mal podia reprimir. Emília efetivamente tinha saído mais satisfeita do que viera da missa do Galo; e o motivo parecia ser um pequeno bilhete, que ela já por mais vezes lera furtivamente à claridade da lareira. Mas isto, na confusão, não era notado, nem até o seria por António, a não sobrevir um acidente.
Mais por comprazer com as aldeãs, suas amigas, do que por boa vontade, Emília entretinha-se a bailar com algumas delas: no conflito do brinquedo saltou-lhe do seio o misterioso papel, que tão preocupada a trazia: as camponesas julgando ser alguma carta de António, lançaram-se sobre ele de roldão querendo-o tomar nas mãos; porém Emília com presteza o apanhou; mas não tão rápido, que não fosse vista por António, que, chegando-se a ela, lhe disse:
— Parece-me que saíste mais alegre do que entraste. Terás acaso algum feitiço que te dessem nesse papel?
— Feitiço?! Ora tens coisas, António! Isto é… É… — E Emília balbuciou algumas palavras, sem que atinasse com resposta. — Olha, António — continuou ela, puxando-o de parte: — eu devo estar certa de que confias no meu amor, não é assim?
— E quem o duvida? — acudiu António, agastado pela estranheza da pergunta.
— Pois então asseguro-te que este papel em nada pode alterar a nossa estima; mas peço-te só que o não queiras ver antes de nos recebermos…
— Antes de nos recebermos!… E porque mo não deixas ver hoje, agora mesmo? — porfiou António, levado da singularidade da exigência. — E dizes tu que não duvide eu de que me estimas?! Se assim fosse, não teimarias em ver o papel. E que desconfias de mim — continuou Emília, tomando um ar pesaroso, e pregando os olhos no chão.
— Não, minha Emília; não é desconfiança, é só curiosidade, mas nem essa já tenho — acrescentou com ternura o camponês, lançando-lhe um braço em torno da cintura —; já até nem quero ver esse maldito papel que foi a causa de tu te agastares comigo.
— Agastar-me contigo? Estás a brincar — replicou-lhe Emília, dando-lhe a mão que apertou com afeto.
— Vamos para a mesa, rapazes — grita a velha Catarina, com voz de estentor: — toca a consoar. Aqui não há guisados, mas o que há é de boa vontade. Sô padre-cura… O Jerónimo!, conduz o sô padre-cura.
Aos gritos de Catarina, Diamante empinou-se, e todos se dirigem para a mesa.
Jerónimo conduziu o padre e o boticário, os quais tomaram assento; e os restantes, ao seu exemplo, fizeram o mesmo.
A mesa vergava com o peso de uma taleiga ingente, atolada de chispes de porco e nabiças, que estavam que os anjos os podiam comer, segundo a frase da boa da dona da casa: ao lado campeavam dois avultados canjirões de vinho da lavra do tio Jerónimo, que amiúde se foram despejando nos canecos parciais, que giravam em contradança sucessiva pelas mãos dos convivas. Uma ampla escudela, cheia de bolos de festa, completava a guarnição e atiçava os olhares do boticário, que já se fazia com terra de engolir a sua meia dúzia, e sepultar outra meia nas amplas algibeiras do sobretudo.
— Cá os bolos de festa são obra de Emília, padre-cura — disse Jerónimo, oferecendo-os ao padre, e revendo-se na filha.
— Deus a abençoe, e faça tão feliz com António, como têm sido seus pais, já que têm as boas qualidades deles — respondeu o padre, afagando a jovem camponesa, que lhe retribuiu, beijando-lhe a mão.
António, durante a ceia, não tirara os olhos dela, mal podendo deixar de lhe dar reparo da sua visível tristeza. Emília bem o tinha percebido, e por isso lutava consigo por aparentar de distraída e satisfeita; mas debalde porque o pesar oculto, que lhe confrangia o peito, transpirava manifestamente no seu rosto. António conhecia a fundo a pureza daquela alma, e amava -a como se pode amar uma mulher; todavia, não lhe querer ela mostrar aquele sinistro papel, estar triste e preocupada na véspera do seu noivado, quando importava estar mais alegre do que nunca, era uma coisa cuja explicação ele não achava, por mais que ruminasse: e ainda estaria a pensar nisto, se não fosse um berro estrondoso da tia Catarina, que se dirigia aos aldeões nestes termos:
— Então, rapazes, parece que estão mais para dormir do que para comer.
Fortes piscos, não bolem com os queixos senão para dar à taramela. Eu bem sei o que vocês querem… Não estejam a olhar para mim de boca aberta, que eu bem os entendo… Aposto que querem ir na brincadeira?! Hein?
— É verdade, tia Catarina; queremos, queremos — romperam todos os aldeões, erguendo-se, como maioria de câmaras legislativas ao aceno ministerial.
— Pois dancem e brinquem com a breca; mas olhem que eu ainda quero um resto da noite para dormir, ouviram? — disse o tio Jerónimo, erguendo-se da mesa, depois de ter dado graças, e haver recebido a bênção, que o padre deitou a todos.
Os aldeões, acesos em alegria, saltaram para o meio da casa, e dispuseram-se a formar danças buscando os seus pares válidos. António travou do braço de Emília, dizendo-lhe:
— Isso é mentira.
— O quê, António?
— O que estás a pensar.
— Assim Deus o quisesse — exclamou ela, volvendo um olhar a António, onde se pintava a angústia.
— Mas que tens tu, Emília? Olha que me preocupas, ainda que eu o não queira — replica-lhe o jovem aflito.
— Pois não falemos mais nisto. Sabes que mais, vamos dançar — diz ela desviando adrede o fio da conversa; e nisto lhe enfiou o braço, esforçando-se por se mostrar contente e incitando-o a dançar.
António quase que compelido por Emília chegou-se com ela para junto dos aldeões, que formavam rodas, ou coreias, bailando em círculo, de mãos dadas, as quais soltavam, tomando o braço aos pares, e andando assim em volta, quando em chusma respondiam, cantando, a quadra, que um, a solo, havia entoado.
À chegada dos noivos, uma aldeã mocetona, gentil e morena, que tentara seus requebros a respeito do amante de Emília, rompeu nesta cantiga:
Janelas avarandadas
Longe deitam as biqueiras:
Não há vida mais feliz
Que a das raparigas solteiras.
Os camponeses andando em roda, responderam em chusma:
Ó giralda, giraldinha,
Toca, toca o giraldar,
Meia volta, uma volta
Outra volta eu quero dar.
A primeira quadra era uma luva lançada a terreiro: Emília logo percebeu onde ia bater a pedrada, e por isso respondeu:
O que pinheiro tão alto,
O que pinhas tão douradas;
Não há vida mais feliz
Que a das mulheres casadas.
A resposta foi acolhida com aplausos; porque quase todos percebiam a alusão; e António, que a percebia melhor do que ninguém, olhando Emília, entoou a seguinte copla:
A laranja, quando nasce,
Logo nasce redondinha:
Também tu, quando nasceste,
Logo foi para ser minha…
Um uivo agudíssimo, lúgubre e prolongado, cortou a toada. Fora Diamante que o soltara, erguendo-se de um salto de ao pé da lareira, fitando a porta, com o pêlo hirto, os olhos em fogo, e açoitando as espáduas com a cauda, como que preparando-se a arremeter um inimigo invisível. No mesmo instante uma voz rouca e cava, mais infernal do que humana, entoou, da parte de fora da casa, esta quadra, que parecia responder à de António:
O limão tira o fastio:
A laranja o bem-querer
Tira tu dela o sentido,
Que tua não pode ser.
— Isto é demais! — brada António, aceso em cólera, .me metendo ao canto da casa, onde estava o seu varapau.
— Jesus! Santo nome de Jesus — exclamaram as mulheres.
A porta foi aberta, e todos os homens, menos o padre e o boticário, saíram armados do que acharam à mão. António os precedia, levando-lhes grande dianteira; e Diamante, espumando de sanha, pulava-lhes na frente.
Catarina, enfiada, agarrou-se ao padre gritando-lhe:
— Em nome do bento Jesus, sô padre-cura; detenha o meu Jerónimo — mas o padre, desembaraçando-se dela, correu para Emília, que baqueava no chão, sem sentidos.
— Algum espírito para esta pequena cheirar — brada o boticário, dirigindo-se às aldeãs, que aterradas cercavam Emília.
— Ai! A minha filha, que está morta! — exclamou a tia Catarina, lançandose sobre ela.
— Olhe que a sufoca, tia Catarina — diz-lhe o padre, separando-as. — Está só desmaiada. O melhor é desapertá-la.
— Desapertem-lhe as roupinhas, que eu não sei de mim — diz Catarina às raparigas, que esfregavam os pulsos e as fontes a Emília com vinagre sete ladrões, e lhe faziam respirar mostarda. Que papel é esse? — continuou ela, pegando no misterioso bilhete, que saltara do seio de Emília ao desapertarem-na.
— Veja lá, sô padre-cura, que eu disso nada entendo.
O padre tirou os óculos, e dispunha-se a lê-lo, quando um clamor de vozes, vindo da parte de fora, distraiu a atenção a todos.
— Que desgraça! Que desgraça! — exclamou o tio jerónimo entrando, e atirando consigo para cima de um banco, e depois desatando a chorar, como uma criança.
— Que foi? — pergunta Catarina, toda cheia de espanto — que foi que aconteceu, Jerónimo?
— Assassinaram o nosso António!
Um grito de terror saiu da boca de todos.
— Assassinaram António?!… E quem foi o assassino?!… — pergunta o padre, tomado da mais viva aflição — Onde está? Não o prenderam?
— Qual prender! Isso é bom de dizer — respondeu um dos rapazes da aldeia. — Vá lá prendê-lo à corrente onde ele se atirou da quebrada da serra. — Mas como foi isso? — interroga o boticário.
— Ora como foi? — continua o mesmo rapaz. — António saiu daqui, e adiantou-se de nós: lá em baixo ao voltar, quase ao pé da encruzilhada, aí é que me parece que foi que o meliante o assaltou, pois foi aí que o encontrámos estirado com a cabeça aberta, e o corpo feito num crivo de facadas. — Santo nome de Jesus! — gritaram todos.
— Que fatalidade! — disse o padre, erguendo as mãos ao céu.
— E como souberam que o malfeitor se despenhou na corrente? — continuou o padre.
— Porque Diamante se lançou a ele com unhas e dentes — prosseguiu o aldeão.
— Nós ainda o vimos, na subida da encosta a lutar com o matador de António; mas não pudemos ser bons para aquele patife; porque, assim que nos acercámos mais, vimos cair o pobre do cão, e o homem a seguir para o lado da quebrada. Diamante estava cosido a facadas. Nós, quando vimos tanta maldade, seguimos todos aquela alma danada dispostos a arrancar-lhe as entranhas pela boca, ainda que fosse o demo em pessoa; mas ele tirou-nos este trabalho; porque, ao chegar à quebrada, lançou-se à corrente…
Uma risada esganiçada, estridente, nervosa e aguda, interrompeu o aldeão.
Era Emília que, voltando a si, entreouvira a narração da morte de António; e que, desvairada pelos terríveis acontecimentos daquela noite, soltara a quela gargalhada.
Todos espavoridos e pasmados a rodearam.
— Foste tu! — clama ela, pálida, convulsa, e enviesando os olhos. — Foste tu, malvado, que o mataste? E porquê?!… Porque sempre te tive ódio… Ódio! Sim, ódio, e muito ódio!… O meu coração já o adivinhava… Mas porque não avisei eu António?!… Tu já me tinhas dito neste papel que o havias de matar…
Oh! Neste papel, que tu me entregaste, por entre o tumulto, ao sair da freguesia!… E eu aceitei-o!… Julgando que era António, que me apertava a mão!… Mas ele ali está!… Está ali a devorar-me com os olhos!… — continuou ela com um tom de indizível raiva, apontando para o velho Jerónimo, que a soluçar a olhava, debulhado em lágrimas; depois contorcendo-se, como possessa de espírito mau, caiu em novo desmaio.
— Minha filha! Minha querida filha! — clamou Catarina de joelhos, junto dela.
— Mas que papel é esse, de que fala ela? — diz Jerónimo.
— Talvez seja o que o padre tem na mão, que foi achado no seio de Emília — responde uma aldeã.
— Ai! Nem de tal me lembrava já — diz o padre.
— Estou como fora de mim. Vamos a ver se o papel explica alguma coisa. O padre leu o seguinte:
«Emília, pensa bem quanto pode um amor desprezado; e fica certa de que Pedro, assim como te soube amar, também saberá vingar-se.»
Eram as terríveis palavras que Pedro, o militar, proferiu ao despedir-se de Emília, quando a fora pedir para esposa aos seus pais, e ela o recusara. O seu infernal protesto de vingança fora cumprido.
Tinham decorrido dois anos, o aspeto da aldeia tinha mudado: era triste e árido. A família de Jerónimo, que fora o centro da alegria, em torno da qual gravitavam os pobres camponeses, estava curtida de pesares e angústias.
Era uma tarde ao pôr-do-sol: o tio Jerónimo, encanecido e curvado, estava sentado à porta da sua habitação, olhando fito o horizonte, onde ele contemplava o astro do dia findando a sua carreira, como para ele já tinha findado a sua ventura. Era a imagem da sua sorte! Duas lágrimas deslizavam pelas faces do pobre velho.
Catarina, magra, dobrada, e como demente, rezava ao pé do seu marido.
No meio da estrada, junto de uma encruzilhada, via-se uma camponesa de poucos anos, sentadinha num valado, próximo de uma cruz tosca de madeira, que se erguia de entre as piteiras. Uma palidez mortal, como véu mortuário, cobria-lhe o rosto. Os seus olhos, posto que formosos, divagavam errantes e sem intenção. Os olhos são os núncios da inteligência; neles não havia expressão, porque na mísera aldeã não havia entendimento. Era a louca da aldeia; a mal-aventurada Emília; aquela que dantes fora chamada Flor da Serra e o sítio onde ela estava, o lugar em que tinham assassinado António, o esposo do seu coração.
Seis horas soaram no campanário da freguesia. O som triste e pesado do sino pareceu arrancar dolorosas recordações à pobre doida; levantou a cabeça e ergueu-se, olhou a aldeia, e depois tomou pela estrada, para o lado da freguesia, e desapareceu.
Deram sete horas, deram oito, e Emília ainda não aparecia em casa; deram oito e meia; deram em fim nove, e ela sem aparecer.
— Vão-me procurar a minha filha! A minha querida Emília! — grita Jerónimo, cheio de inquietação.
— Ela aqui está — lhe respondem uns aldeões que traziam Emília em braços, pálida e fria.
— Foi encontrada no cemitério, sobre uma sepultura semeada de flores.
Era a sepultura de António.
Emília tinha voado para ele.
José Maria de Andrade Ferreira