Lápis Mágico

Os Compadres corcundas

Os Compadres corcundas é um conto tradicional do Brasil, uma recolha feita no âmbito da divulgação do património da tradição oral da CPLP

Os Compadres corcundas, conto tradicional do Brasil

Era uma vez dois corcundas, compadres, um rico e outro pobre. O povo do lugar vivia mangando do corcunda pobre e não reparava no rico. O pobre andava triste e, de mais a mais, o tempo estava cruel e ele era caçador.

Numa feita, esperando uns veados, já tardinha, adormeceu no jírau e acordou noite alta. Ficou sem querer voltar para casa. la-se acomodando para pegar no sono de novo, quando ouviu uma cantiga ao longe, como se muita gente cantasse ao mesmo tempo.

– Deve ser alguma desmancha de farinha aqui por perto. Vou ajudar!

Desceu da árvore e botou-se no caminho, andando, andando, no rumo da cantiga que não descontinuava. Andou, andou, até que chegando perto de um serrote, onde havia uma laje limpa, muito grande e branca, viu uma roda de gente esquisita, vestida de diamantes que espelhavam ao luar. Velhos, rapazes e meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo verso, sem mudar:

Segunda, terça-feira, Vai, vem! Segunda, terça-feira, Vai, vem!

O caçador ficou tremendo de medo. As pernas nem deixavam ele andar. Escondeu-se numa moita de mofundos e assistiu, sem querer, àquela cantoria que era sempre a mesma, durante horas e horas.

Com o tempo, foi-se animando, ficando mais calmo e, sendo metido a improvisador e batedor de viola, cantou, na toada que o povo esquisito estava rodando:

Segunda, terça-feira, Vai, vem! E quarta e quinta-feira, Meu bem!

Boca para que disseste! Calou-se tudo imediatamente e aquele povo todo espalhou-se como ribaçã, procurando, procurando. Acharam o corcunda e o levaram para o meio da laje, como formiga carrega barata morta. Largaram ele e um velhão, brilhando como um sacrário, perguntou, com uma voz delicada:

– Foi você quem cantou o verso novo da cantiga?

O caçador cobrou coragem e respondeu:

– Fui eu sim, senhor!

O velhão disse:

– Quer vender o verso?

– Quero sim, senhor. Bem, na verdade, não vendo, mas dou o verso de presente, porque gostei do baile animado.

O velho achou graça e todo aquele povo esquisito riu também.

– Pois bem, disse o velhão: uma mão lava a outra. Em troca do verso eu lhe tiro essa corcunda e esse povo lhe dá um bisaco novo!

Passou a mão nas costas do caçador e este tornou-se esbelto como um rapaz, sem corcunda nem nada. Trouxeram um bisaco novo e recomendaram que só abrisse quando o sol nascesse. O caçador meteu-se na estrada, andando, andando, e, assim que o sol nasceu, abriu o bisaco e o encontrou cheio de pedras preciosas e moedas de ouro. Só faltou morrer de contente.

No outro dia, comprou uma casa, com todos os preparas, mobília, vestiu roupa bonita e foi para a missa, porque era domingo. Lá na igreja, encontrou o compadre rico, também corcunda. Este quase caiu de costas, assombrado com a mudança. Perguntou muito e, mais espantado ficou, quando reparou no traje do compadre e soube que ele tinha casa, cavalo gordo e se considerava rico.

O pobre contou tudo; e, como a medida do ter nunca se enche, o rico resolveu arranjar ainda mais dinheiro e livrar-se da corcunda nas costas.

Esperou uns dias, pensando no que ia fazer; depois, se largou para o mato, no dia azado.

Tanto fez, que ouviu a cantiga e botou-se na direção da toada. Achou o povo esquisito, dançando de roda e cantando: Segunda, terça-feira, Vai, vem! Quarta e quinta-feira, Meu bem!

O rico não se conteve. Abriu o par de queixos e foi logo berrando:

Sexta, sábado e domingo! Também!

Calou-se tudo rapidamente. O povo esquisito voou para cima do atrevido e o levaram para a laje onde estava o velhão. Esse gritou furioso:

– Quem lhe mandou meter-se onde não é chamado, seu corcunda besta? Você não sabe que a gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que morreu o Filho do Alto; sábado, dia em que morreu o Filho do Pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia? Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro!

E, enquanto falava, os outros iam dando empurrão, tapona e beliscão no rico. O velhão passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a outra, aquela de que o compadre pobre se livrara.

Depois deram uma carreira no homem, deixando-o longe, e todo arranhado, machucado, roxo de bofetadas e pontapés.

E, assim, viveu o resto de sua vida, rico, mas com duas corcundas: uma adiante e outra atrás, para não ser ambicioso.

Glossário:

mangando > zombando jirau > estrado de madeira, cama de varas desmancha de farinha > moedura dos grãos mofundos > cipós ou mato típico batedor de viola > tocador de viola bisaco> bornal, mochila boca para que disseste! > expressão para quem diz o que não deve dizer! ribaçã > ave de arribação, aves voantes azado > marcado abriu o par de queixos > berrou besta > metido à besta, vaidoso acabo com seu couro > bato-lhe muito tapona > bofetada, tapa forte.

“Contos Tradicionais da CPLP”


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