Lápis Mágico

O Sargento que foi ao inferno

Quase perto da meia-noite, o rapaz disse para a sua noiva, que era bom retirarem-se para casa. Mais um bocadinho, mais um bocadinho. Pede daqui, pede dali. O certo é que já tinha dado a meia-noite, eles ainda longe de casa.

O Sargento que foi ao inferno, conto tradicional de Teófilo Braga

Havia numa terra um sargento, que era muito bom rapaz; um rico mercador tomou-lhe amizade, arranjou-lhe a baixa e tomou-o para seu empregado. Como o mercador tinha filhas, o sargento apaixonou-se por uma delas: ora o mercador era muito desconfiado e nunca deixava sair as filhas de casa, mas pela grande conta em que tinha o rapaz ele mesmo lhe falou para se fazer o casamento.

Tudo corria muito bem; vai, acontece ir uma peça muito linda no teatro, e como as filhas desejassem ver, pediram ao sargento, que só ele é que era capaz de apanhar licença do pai para as deixar ir ver. O mercador ficou carrancudo, mas deu licença, dizendo:

– Deixo ir as minhas filhas com o senhor, e é com a condição, que quando der a última badalada da meia-noite hão-de estar aqui à porta. Disseram todos que sim, e partiram.

Quase perto da meia-noite, o rapaz disse para a sua noiva, que era bom retirarem-se para casa. Mais um bocadinho, mais um bocadinho; pede daqui, pede dali; o certo é que já tinha dado a meia-noite, eles ainda longe de casa.

Assim que o rapaz bateu à porta, abriu-se logo de repente, e o mercador começou a bradar:

– Foi assim que o senhor cumpriu as ordens que eu lhe dei? Pois trate já de arranjar as suas coisas que nem já esta noite me fica em casa.

– Oh senhor, então só por isto! E quando estava já para casar com sua filha!

O velho respondeu-lhe:

– Só tem um meio de poder casar com minha filha, e voltar para casa.

– Qual?

– Vá ao Inferno, e traga-me três anéis que o Diabo tem no corpo, dois debaixo dos braços, e outro num olho.

O rapaz achou aquilo impossível; mas que remédio teve senão pôr-se a caminho. Na primeira terra a que chegou, pregou um edital em que dizia: “Quem quiser alguma coisa para o Inferno, amanhã parte um mensageiro.” Isto causou grande curiosidade, até que chegou aos ouvidos do rei, que mandou chamar o rapaz.

Perguntou-lhe o rei:

– Como é que você vai ao Inferno?

– Real senhor, por ora ainda não sei; ando em procura dele, e irei lá, dê por onde der.

– Pois bem, disse o rei, quando encontrares o Diabo, pergunta-lhe se ele sabe de um anel de muito valor que eu perdi, do que ainda tenho grande desgosto.

Chegou o rapaz a outra terra e botou o mesmo anúncio. O rei também o mandou chamar:

– Tenho uma filha que padece uma doença muito grande, e ninguém lhe acerta com o mal. Já que vais ao Inferno quero que saibas por lá onde é que estará a cura.

O rapaz partiu sempre à procura do Inferno, e foi dar a uma encruzilhada em que estavam dois caminhos, um com pegadas de gente, e o outro com pegadas de ovelhas. Pensou, e por fim seguiu pelo caminho das pegadas de gente; ao meio dele encontrou um ermitão, de barbas brancas, que rezava em umas camândulas muito grandes, e lhe disse:

– Ainda bem que tomaste por este caminho, porque esse outro é o que vai para o Inferno.

– Oh, senhor! E eu há tanto tempo que ando à procura dele!

O rapaz contou-lhe todo o acontecido; o ermitão teve compaixão dele, e disse:

– Já que tens de ir ao Inferno, vai, mas sempre leva contigo estas contas, porque antes de lá chegar tens de passar um rio escuro, e há-de ser um pássaro que te há-de levar para o outro lado; e quando ele te quiser afundar no rio, joga-lhe as contas ao pescoço. Daqui em diante não sei mais o que te sucederá.

Assim aconteceu. Chegado ao Inferno o rapaz teve um grande medo, e viu para ali um forno vazio e escondeu-se dentro dele. Quando estava todo agachado, passou uma velha muito velha e viu-o.

– O menino aqui! Ora coitadinho, que é tão lindo; se o meu filho o visse matava-o, com certeza. O que veio cá fazer?

O rapaz contou tudo à mãe do Diabo; a velha teve pena dele, e disse-lhe:

– Olhe; pois deixe-se ficar aqui escondido, porque eu não sei quando o meu filho virá; ele está assistindo à morte do Padre Santo, que está nas agonias, e quer-lhe apanhar a alma. O rapaz pediu à velha se sabia do Diabo as perguntas de que trazia encomenda. Quando estavam nestas conversas chegou o Diabo bufando; a velha escondeu-o logo, e disse:

– Anda cá, filho, para descansares; deita-te aqui no meu colo.

O Diabo deitou-se e ficou logo a dormir. A velha foi muito devagarinho com as unhas e arrancou-lhe um anel que tinha debaixo do braço. O Diabo mexeu-se desesperado, gritando:

– Isto o que é?

– Ai, filho, fui eu que me deixei dormir, e dei uma pendedela em cima de ti. Estava a sonhar com aquele rei que perdeu o anel, e que nunca mais o tornou a achar. – Pois é verdade esse sonho, respondeu o Diabo; está debaixo de uma laje ao pé do repuxo do jardim.

O Diabo tornou a ficar a dormir; a velha sorrateira arrancou-lhe o segundo anel. O Diabo tornou a acordar desesperado:

– Tem paciência, filho; tornei-me a deixar dormir e a sonhar com a filha daquele rei que nenhum médico sabe curar.

– Também é verdade; a doença dela é o sapo-sapão, que está metido no enxergão. Tornou o Diabo a dormir. Para arrancar o anel do olho é que foram os trabalhos.

A velha tirou-o com um espéculo, e o diabo com a dor e zangado com as pendedelas, saiu pela porta fora. O rapaz recebeu tudo da velha; voltou para o mundo, quando ela chamou o pássaro: “Menino, menino, menino.”

Foi dali entregar as contas ao ermitão. Depois passou pela terra do rei que tinha perdido o anel, que lhe deu muito dinheiro quando o tornou a achar debaixo da laje. Depois passou pela corte do rei que tinha a filha doente, disse onde estava o sapo-sapão. A princesa melhorou logo, e o rei pediu-lhe para que dissesse a paga que queria.

– Quero que Vossa Majestade me dê o seu poder por oito dias.

O rei mandou deitar um pregão para ele governar oito dias; o rapaz partiu logo para a terra do sogro, e deu ordem logo que lá chegou para o mercador dentro em meia hora lhe vir falar à sua presença. O mercador foi, mas quando chegou era já mais de uma hora. O rapaz disse:

– Podia-o mandar matar, por me ter desobedecido, em vir depois da meia hora.

– Oh senhor, não me demorei por minha vontade.

– Pois sim. Mas porque não soube em tempo desculpar aquele pobre sargento que pôs fora de sua casa?

O mercador conheceu então o antigo noivo de sua filha, que tinha sempre chorado, confessou o seu erro, e pediu-lhe de joelhos muitos perdões. O rapaz entregou-lhe os anéis do Diabo, e nesse mesmo dia casou com a sua namorada, por quem tinha metido um pé no Inferno.

Contos Tradicionais do Povo Português, Teófilo Braga, 1883

O Sargento que foi ao inferno


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