Num bosque, havia uma casa de campo na qual vivia um homem com o seu único filho. Nas proximidades, erguia-se um grupo de possantes bétulas em que um bando de perdizes de pata branca costumava pousar. O rapaz pedira numerosas vezes ao pai que o deixasse alvejá-las, porém este proibira-o terminantemente de matar uma única. Um dia, o filho impacientou-se, decidiu ignorar a ordem e, sem que o progenitor se desse conta, pegou no arco e numa flecha e atingiu uma das aves. Mas não lhe acertou em cheio, e ela continuou a bater as asas até que acabou por cair. O rapaz tentou capturá-la, mas sempre que se aproximava a perdiz conseguia afastar-se um pouco.
Estes movimentos fizeram com que ele se internasse cada vez mais no bosque atrás dela, até que se encontrou a vários quilómetros de casa.
Ainda persistia na perseguição, quando alcançou uma área de vegetação muito densa e, como começava a escurecer, teve de desistir da perdiz no momento em que esta mergulhou entre o arvoredo, sem deixar rasto.
O rapaz tentou então encontrar o caminho de regresso a casa, mas não sabia que rumo seguir. Deambulou demoradamente de um lado para o outro sem descortinar uma única residência humana e, quando anoiteceu, resignou-se à ideia de ter de dormir no bosque. De repente, avistou Paholainen, que corria perseguido por alguns lobos que lhe mordiscavam os calcanhares. O rapaz pegou imediatamente no arco e visou a alcateia, conseguindo atingir vários, enquanto os outros, espantados, batiam em retirada. Paholainen alegrou-se profundamente por se ter livrado do perigo. Aproximou-se do jovem, agradeceu ter-lhe salvo a vida e prometeu dar-lhe uma boa recompensa, se o acompanhasse a sua casa.
— Não é má ideia dispor de um lugar para passar a noite — admitiu o rapaz.
— Vagueei pelo bosque durante todo o dia, sem conseguir encontrar o caminho de regresso a casa.
— Então, vem comigo — insistiu Paholainen.
Quando chegaram, o rapaz foi-se deitar imediatamente, pois estava extenuado da longa caminhada, enquanto o companheiro voltava ao bosque, a fim de procurar alimentos para oferecer ao seu salvador.
Entretanto, a governanta tentou acordar o jovem. Sacudiu-o e gritou-lhe que se encontrava num lugar perigoso e devia retirar-se, mas debalde. Ele entreabriu os olhos por duas vezes, para voltar a mergulhar em sono profundo.
Pouco depois, o velho regressou do bosque e ordenou à governanta que preparasse rapidamente uma refeição, a qual ficou pronta sem demora, e chamaram o rapaz para lhes fazer companhia, mas como não conseguiram despertá-lo, tiveram de comer sós. A seguir, o velho voltou a afastar-se em direcção ao bosque, para reaparecer de novo com alimentos, porém desta vez o jovem também não comeu, devido a continuar imerso em sono profundo. Depois, o velho dirigiu-se pela terceira vez ao bosque.
Durante a sua ausência, o rapaz acordou finalmente e conversou com a governanta, a qual já não o aconselhou a partir, pois entretanto inteirara-se de que salvara a vida ao amo, que decerto o recompensaria principescamente. Em vez disso, começou a ponderar o que ele poderia pedir como compensação e, por fim, sugeriu que lhe pedisse o cavalo que se encontrava no terceiro lugar do lado direito do estábulo.
Quando o velho regressou e viu que o rapaz acordara, mandou-lhe servir carne e outras iguarias excelentes e vinho com abundância. No final do repasto, perguntou-lhe:
— Que desejas como recompensa, meu rapaz?
— Gostava que me oferecesses simplesmente o cavalo que está no terceiro lugar da direita do teu estábulo, pois tenho um longo caminho a percorrer para regressar a casa.
— Pedes-me uma recompensa muito elevada, pois trata-se da minha melhor égua. Escolhe outra coisa, porque isso não te posso de modo algum dar.
No entanto, o jovem respondeu que só lhe interessava a égua, pelo que Paholainen acabou por ceder. Além disso, ofereceu-lhe uma kantele, um violino e uma flauta, dizendo:
— Se alguma vez estiveres em perigo, toca a kantele. Se não receberes ajuda, toca o violino. Se continuar a não aparecer, basta que toques um pouco a flauta e então o auxílio não deixará de surgir.
O rapaz agradeceu-lhe reconhecidamente, pegou nos instrumentos musicais e partiu montado na água. Passado algum tempo, esta última começou a falar:
— Não deves voltar para casa, pois o teu pai matava-te à pancada. E preferível irmos a uma cidade que conheço, onde seremos bem recebidos.
O jovem refletiu por um momento, pareceu-lhe um bom conselho e seguiu para a cidade, onde não tardou a ser conhecido por todos os habitantes devido à sua admirável égua, e até o rei se inteirou e desejou certificar-se com os seus próprios olhos. Ao vê-la, quis imediatamente comprá-la e prometeu pagar qualquer preço que o rapaz lhe pedisse. No entanto, ela impediu a transação recomendando ao dono:
— Não me vendas. Pede-lhe que te contrate como moço de estrebaria e me dê também forragem, e todos os seus cavalos se tornarão exatamente tão belos como eu.
O jovem transmitiu a pretensão ao rei, o qual o recebeu, juntamente com a montada, nas cavalariças reais e lhe concedeu o cargo de moço de estrebaria. Pouco depois, todos os cavalos do monarca apresentavam um aspeto admirável e pareciam muito bem alimentados. No entanto, o moço de estrebaria substituído guardava profundo rancor ao rapaz e procurava uma oportunidade para se vingar. Comunicou ao rei toda a espécie de rumores a respeito dele, mas não foi escutado. Por último, mentiu dizendo que o novo moço de estrebaria se vangloriara de ser capaz de recuperar um magnífico corcel de guerra desaparecido havia alguns anos no bosque. Quando ouviu aquilo, o rei sentiu um desejo intenso de voltar a ter em seu poder um animal que considerava de estimação. Assim, mandou chamar o rapaz e ordenou-lhe que trouxesse o cavalo à sua presença no prazo de três dias, de contrário sofreria as consequências.
O jovem ficou positivamente apavorado e tratou de consultar a égua, a qual desdramatizou a situação.
— Não há qualquer motivo para preocupação. Para já, pede ao rei que te dê cem bois e manda-os reduzir a pedaços. Com isso, empreenderemos viagem e chegaremos a uma fonte da qual surgirá um cavalo, mas não lhe deves tocar. Pouco depois, virá outro, que também rejeitarás. Por fim, aparecerá um terceiro, que capturarás e tratarás de lhes colocar os meus arreios.
O rapaz seguiu as instruções e cavalgou até à fonte, da qual emergiram três cavalos, um após outro, até que escolheu o último e o embridou. No final da operação, a égua voltou a falar:
— Quando sairmos daqui os corvos de Paholainen tentarão comer-nos. Deves largar os pedaços de carne pelo caminho, todos os que puderes e o mais rapidamente possível, e continuar a cavalgar a toda a velocidade. Se procederes assim, escaparemos certamente às garras dos corvos.
O jovem seguiu novamente o conselho e conseguiu apresentar-se, são e salvo, perante o rei com o cavalo pedido.
No entanto, o antigo moço de estrebaria não desistia de tentar difamá-lo e decidiu referir ao monarca que o seu substituto se vangloriara de conseguir recuperar a rainha, há muito tempo desaparecida. Em face disso, o rei ordenou ao rapaz que a fosse buscar, já que estava seguro de conhecer o seu paradeiro, de contrário teria a morte à sua espera.
Desta vez, o jovem assustou-se a valer e dirigiu-se à cavalariça, para revelar as suas mágoas à égua.
— Agora, tenho de encontrar a esposa do rei! Como o conseguirei, se há tanto tempo que ninguém sabe dela?
— Não te aflijas, que havemos de a encontrar — garantiu-lhe ela.
— Dirige-te à mesma fonte do outro dia e atira-me para dentro dela. Voltarei a converter-me num ser humano, pois sou a mulher que precisas de localizar, embora fosse obrigada a viver em casa de Paholainen, convertida em égua.
Que preocupações podiam restar ao rapaz, depois de escutar estas palavras? Dirigiu-se imediatamente à fonte, dentro da qual lançou a égua, que se transformou numa mulher extremamente bela, e regressaram juntos ao palácio. Ao vê-la, o rei alegrou-se tanto, que elogiou o moço de estrebaria diante de toda a corte e ofereceu-lhe valiosos presentes como recompensa.
Mas o rapaz ainda não recuperara o sossego. O antigo moço de estrebaria tomou a mentir ao rei, revelando-lhe que o jovem ameaçara assassinar o monarca e substituí-lo no trono.
Ao ouvir aquilo, este último enfureceu-se tanto que os olhos emitiam chispas e ordenou o enforcamento imediato do suposto conspirador. Como último desejo de um condenado, o rapaz pediu que o deixassem tocar a sua kantele antes de ser executado. Obtida autorização, fê-lo com todas as suas forças. Assim que o instrumento começou a soar, os verdugos puseram-se a dançar. Ele tocou ao longo de todo o dia e as pessoas estavam tão esgotadas de tanto saltar que quase não se podiam mover, pelo que houve necessidade de adiar a execução para a manhã seguinte.
Voltou então a reunir-se uma multidão para assistir ao enforcamento do jovem, o qual pediu que o deixassem tocar pela última vez o seu violino, antes de se despedir definitivamente do mundo, autorização que lhe foi mais uma vez concedida. Mas, logo após as primeiras notas musicais que brotaram do instrumento, o rei e o povo puseram-se a dançar, cena que se prolongou por todo o dia, pelo que a execução foi novamente adiada.
No terceiro dia, dispuseram-se a executar o rapaz de uma vez por todas. Nessa altura, ele rogou que o deixassem tocar a sua flauta. O rei, agora pouco inclinado para o comprazer, argumentou:
— Já me obrigaste a dançar dias inteiros. Se, agora, aceder ao teu novo pedido, terei de o voltar a fazer até morrer. Não! Acabou-se! O momento não é apropriado para bailar. Coloquem-lhe o laço ao pescoço, depressa!
No entanto, o condenado suplicou com tanta humildade, que os fidalgos solicitaram ao monarca:
— Deixai-o tocar um pouco, já que tem de morrer tão jovem! Embora com relutância, o rei consentiu, não sem primeiro ordenar que o atassem a um abeto, para ficar impedido de dançar enquanto soasse a música.
Uma vez atado, indicou ao rapaz que começasse a tocar a flauta, pelo que, pouco depois, todos dançavam com entusiasmo. Por seu turno, o rei movia-se para cima e para baixo contra o tronco do abeto e acabou por ficar com as costas esfoladas e o vestuário reduzido a andrajos. No mesmo instante, o velho Paholainen apresentou-se para ajudar o jovem, ao qual perguntou:
— Que delito cometeste, rapaz, para justificar este espetáculo?
— Nenhum, mas querem enforcar-me com esta corda que tenho em volta do pescoço.
— Com que então, é isso que te querem fazer? — exclamou Paholainen. E pegou na forca, constituída por um tronco de abeto enorme de raízes profundas, e lançou-a pelos ares, tão alto que ninguém a tornou a ver. Em seguida, perguntou ao jovem:
— E agora, quem queres enforcar?
O interpelado apontou para o rei, que continuava atado a outro abeto. O velho pousou as mãos na árvore e lançou-lhe tal maldição, que árvore e homem desapareceram voando em direção às nuvens, ninguém sabe para onde. Agora, o rapaz deixara de correr perigo e o povo proclamou-o seu novo rei.
** DIEDERICHS, Ulf,Palácio dos Contos,vol.I, Círculo de Leitores, Lisboa,1999**