Lápis Mágico

O cavalinho Branco

O cavalinho Branco de António Torrado extraído do livro Trinta por uma linha

O Cavalinho Branco, história infantil de António Torrado

Era uma vez um cavalinho branco. Mas não era todo branco o cavalinho branco. Tinha estrelas azuis, muitas estrelas azuis espalhadas por todo o corpo e uma estrela maior no lugar do coração. Era um cavalinho branco às estrelas azuis.

*Roda, roda, roda

na grande roda o cavalinho.

Roda, roda, roda

Corpo de estrelas, flor no focinho.*

Não seria bem uma flor, mas quase. Parecia mesmo uma flor. Só um cavalo especial, um cavalo raro, pode assim mostrar uma flor no focinho e tantas estrelas azuis pelo corpo todo.

Este era um cavalo especial, um cavalo de carrossel.

Não andava contente com a sua vida, o cavalinho branco às estrelas azuis. Aquilo de ter de fingir que trotava, sempre à roda, sempre à roda, aborrecia-o. O barulho da música gritada pelos altifalantes e as vozes dos homens que apregoavam farturas e as luzes que baloiçavam dos fios e tremiam, tremiam, e o carrossel, dia e noite, a rodar, a rodar, mais uma volta e mais outra e outra — uf! — punham a cabeça do cavalinho branco também às voltas.

— Não aguento mais estas tonturas — dizia o cavalinho branco. — Vou mudar de vida.

E mudou.

Correu pelos campos, saltou valados, chapinhou nos regueiros e bebeu a água fresca das fontes. Bem bom.

Mas um cavalinho branco às estrelas azuis, para mais em liberdade, acaba por dar nas vistas. Foi o que lhe sucedeu.

Um senhor de grande bigodes retorcidos, botas de montar e chapéu alto, como já ninguém usa, viu-o, uma vez, e gritou-lhe de longe:

— Eh, cavalinho, queres um torrão de açúcar?

Ele queria e veio buscá-lo. Então o senhor que usava botas de montar fez-lhe uma festa no pescoço e disse:

— Anda comigo que, mais logo, quando chegarmos ao circo eu dou-te o açúcar…

Lá foram, o cavalinho num trote curto de cavalinho bem disposto e o senhor de bigodes retorcidos a retorcê-los ainda mais, muito sisudo.

Quando chegaram ao circo, o senhor dos bigodes meteu o cavalinho numa espécie de jaula e disse-lhe assim:

— Logo, quando terminar o espetáculo, se tudo correr bem, dou-te o torrão de açúcar.

Um dos números mais aplaudidos do espetáculo era o do ilustre cavaleiro Arnaldo de Aguinaldo e os seus cavalos amestrados. Os cavalos emplumados e de arreios dourados trotavam à volta da pista, saltavam ao arco, dançavam ao som de uma valsa e ficavam muito quietos, como se fossem estátuas, quando o ilustre cavaleiro Arnaldo de Aguinaldo fazia estalar o chicote, de certa maneira. Eram, aqui fica dito, cavalos muito bem mandados.

Nessa noite, havia um número novo, um cavalinho engraçado, que o domador Arnaldo de Aguinaldo esperava que viria a ser a “estrela” mais brilhante da companhia. E com razão, pois então! Sim, porque não fazia sentido que um cavalinho branco, com o corpo coberto de estrelas, não fosse a “estrela” maior da companhia…

Dava gosto vê-lo, ao cavalinho, a trotar à roda, à roda, sempre à roda da pista, e o senhor cavaleiro Arnaldo de Aguinaldo no meio, de braços abertos, com o chicote numa das mãos e o chapéu alto na outra, como se quisesse dizer: “Admirem, excelentíssimos senhores, as maravilhas que eu tenho para mostrar. Isto vale ou não vale o preço de um bilhete?”

*Roda, roda, roda

roda que roda num redemoinho

roda, roda, roda

finge que voa o cavalinho.*

Pois fingia, realmente, mas não voava. Que triste sina esta a do cavalo branco às estrelas azuis. Não bastavam as voltas que tinha dado, e tantas, no carrossel?

Noites e noites rodou, trotou, dançou na pista do circo… Até que um dia se fartou.

— Chega — disse o cavalinho e pôs-se a andar de ali para fora.

Nem o torrão de açúcar, sempre prometido, sempre adiado, foi reclamar. Dali não levava nada.

Voltou a correr pelos campos, a saltar valados, a chapinhar nos regueiros… Que bom!

Mas, ao que dizem, o que é bom não dura sempre… Um dia, um lavrador que o vira saltar para dentro da herdade, correu atrás dele e, com algum custo, prendeu-o a uma nora. Mas primeiro tomou o cuidado de lhe tapar os olhos com uma venda.

— Por causa das tonturas — explicou ele.

Isso que fazia? Tanto já o cavalinho tinha andado à roda, que se tinha curado das tonturas. Do que não gostava era de andar sempre a pisar o mesmo caminho. Não haveria outro emprego para um cavalo branco com estrelas azuis?

*Roda, roda, roda

na giga-joga o cavalinho

roda, roda, roda

e sempre à roda mói o caminho.*

Talvez fosse possível arranjar outra profissão mais agradável. Qual seria? Deu voltas e voltas e decidiu desempregar-se mais uma vez, sem dar contas a ninguém. Libertou-se da nora, nem sabemos como, e tomou por uma estrada que a algum sítio devia levar.

Pelo mesmo caminho ia um cavalo castanho a puxar uma carroça.

“E se eu fosse também um cavalo de carroça?”, pensou o cavalinho branco às estrelas azuis.

Olhou para o cavalo castanho e viu-o tão triste e tão atormentado pelas moscas, que desistiu.

Em sentido contrário vinha um esquadrão de cavalaria da Guarda Republicana. Que lindos cavalos e que imponentes cavaleiros! “E se eu fosse atrás deles?”, lembrou-se o cavalinho.

Mas o suor escorria do pescoço dos cavalos. Era de tanto terem galopado. E — reparou ainda o cavalinho — as estrelas de metal que os cavaleiros traziam nas botas deixavam um rasto sangrento na barriga dos cavalos. Chamavam àquilo as esporas…

“Ah, sendo assim já não vou”, decidiu o cavalinho branco às estrelas azuis.

Continuou o seu caminho. Foi ter a uma cidade e a um grande largo onde um cavalo de bronze reluzia à luz do sol.

O cavalinho, ao vê-lo, exclamou:

— Ora aqui está um emprego que me calhava. Ninguém nos incomoda e, uma vez por outra, até nos tiram um retraio.

Respondeu-lhe, de cima do seu pedestal, o cavalo de bronze:

— Nem penses nisso. Estou aqui à chuva e ao sol, todo o tempo, e com uma pata no ar, sempre na mesma posição, a fingir que ando, mas não ando, e tu ainda achas que o emprego é bom!? Sonha com outra coisa, mas nunca queiras ser estátua. Então que havia ele de ser? Sim, que modo de vida podia convir a um cavalinho branco às estrelas azuis?

Deu voltas à cidade, deu voltas à cabeça e, por fim, mirando a montra de uma casa de brinquedos, descobriu a sua vocação — iria ser cava­lo de brincar. Postou-se à porta, ao lado dos cavalos de pasta e dos cavalos de madeira e esperou que alguém o quisesse levar. Não esperou muito.

O cavalinho branco às estrelas azuis anda agora nas suas sete quintas. É, agora, cavalo de baloiço, cavalo de balancé… Emprego melhor não conhece. Finge que é cavalo de carrossel, cavalo de carroça, cavalo da Guarda, cavalo de circo, mas é apenas um brinquedo nas mãos de um menino. Bem bom.

António Torrado, Trinta por uma linha, Porto, Civilização Editora, 2008

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