As lendas sempre teciam,
Noutros tempos, noutras eras,
Histórias que entonteciam
O sorrir das primaveras.
*
Romances que as gerações
Doutras gerações traziam,
P’ra falar aos corações
E, assim, os entristeciam.
*
Eram tão tristes baladas,
Relatos de histórias lindas,
Que se contavam, choradas,
Por dias, noites infindas.
*
Se muitas a nós vieram,
Falando casos de amor,
Outras muitas se perderam,
Por falta de narrador.
*
É duma lenda esquecida
Que hoje vos venho falar;
Duma que nenhuma vida
Pôde com ela ficar.
*
Longo tempo andou perdida
Nas margens do esquecimento,
‘té que uma voz dolorida
Me a contou, por um momento.
**
Foi por noite perfumada
Das rosas de algum jardim,
Que ouvi a voz torturada,
E a lenda dizia assim:
*
— “Em tempos que o tempo trouxe
Das mãos de Deus, poderosas,
Era a vida aqui tão doce
E os jardins eram de rosas.
*
“Os ribeiros, que os havia
Correndo por todo o lado,
Prestavam à luz do dia
Um encanto desusado.
*
“E, à noite, brilhavam mais
Que os astros cheios de luz,
Soltando suspiros e ais,
Na raiz de alguma cruz.
*
“Aqui, viviam as gentes
Tão cristãs e tão de siso,
Tão felizes, tão contentes,
Tal fosse no paraíso.
*
“E até os astros dos céus,
Vindos de além do infinito,
Deitavam seus lindos véus,
De luzes sobre o granito.
*
‘Era então a serrania
Sempre de verde florida,
Onde a cor e a luz bebia,
Mesmo a rosa e a margarida.
*
“Isto foi em hora antiga,
Porque depois… ah!… depois,
Veio uma gente inimiga
Que apagou todos os sóis.
*
“E de opróbrio revestiu
Os habitantes cristãos,
— Povo ilustre que serviu
Os moiros, por suas mãos —.
*
“Era a vergonha tamanha
E tão grande o seu sofrer,
Que fugiu, para a montanha,
O povo, p’ra não morrer.
*
“E os sarracenos, senhores
Da terra que emudeceram,
Pisando vergéis e flores,
De pronto se defenderam.
*
“Alto castelo se ergueu
Numa elevação propícia,
Mas.., por aviso do céu,
Nunca dele houve notícia…
*
“Que só a lenda me diz Que ali, de facto, existiram Muros que, desde a raiz, Aos assaltos resistiram.
*
“Foram, por anos compridos,
Viveres tão margurados,
Que os pobres cristãos vencidos
Morriam, abandonados.
*
“té que um dia a luz mais alta
Do futuro despontou,
No tudo em que havia falta,
Na fé que a todos sobrou.
*
“Foi o caso que, por vezes,
Apesar de algum rebate,
Os valentes portugueses
Aos mouros davam combate.
*
“Eram ataques fortuitos,
Feitos repentinamente,
Donde colhiam os fruitos
De ceifar a moira gente.
*
“Foi a força enfraquecendo
Da moirama, em tempo breve,
De tal modo, que só vendo
As coisas que a pena escreve.
*
‘Foi, então, depois a vez,
Havido de Deus sinal,
Do forte Rei português
Dar o combate final.
*
“E os moiros, desbaratados,
Fugiram a bom fugir,
Indo morrer afogados
No mar, ao longe, a luzir.
*
“A lusa gente, após logo,
— Que mais podia fazê-lo? —
Passaram a ferro e fogo
As pedras desse castelo.
*
“Ali tudo foi desfeito
E tudo caiu por terra,
De modo que desse feito
Acabou p’ra sempre a guerra”.
*
Isto foi que disse a lenda
Naquela noite saudosa,
P’ra que mais assim me prenda
À terra de Estoi, famosa.
*
Mas a voz do entendimento,
Que veio de outros avós,
Mais me contou, num momento,
Que sucedeu logo após:
*
“Deus Allah que das esferas
Tudo viu e acompanhou,
P’ra todo o sempre das eras,
A lei fatal decretou:
*
“Hão-de passar muitos anos,
“Os séc’los hão-de correr,
“E nessa vida de enganos
“Muito irá acontecer.
*
“Mas de tudo o que virá
“De mal, por minha vontade,
“Muita fala se dirá
“Duma coisa, na verdade.
*
“É esta a minha sentença,
“Será este o meu castigo
“Que, por vós e por ofensa, “Vai cair, povo inimigo:
*
“Sobre o castelo arruído,
‘Um majestoso e falado
“Palácio será erguido
“P’ra depois ficar fechado”,
*
E assim foi… ninguém esquece
De Allah o puro sentido,
Que o Palácio permanece,
Aqui perto, adormecido…
- *
Foi esta a lenda esquecida
Que as horas vieram contar,
F que irá p’r’além da vida,
Se ninguém quiser salvar
*
Esse Palácio de Estoi,
Prodígio de arquitectura,
Que em outro tempo assim foi
Traçado na pedra dura.
LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas s/l, Edição do Autor, 1995 , p.88-94