Uma antiga lenda que remonta ao século X, conta que o rei Ramiro II de Leão se apaixonou por uma bela moura de sangue azul, irmã de Alboazer Alboçadam, rei mouro que possuía as terras que iam de Gaia até Santarém. Influenciado pela sua paixão e com a intenção de pedir a moura em casamento, Ramiro decidiu estabelecer a paz com Alboazer, que o recebeu no seu palácio de Gaia.
Apesar de já ser casado, Ramiro pensou que seria fácil obter a anulação do seu casamento pelo parentesco que o unia a D. Aldora. Alboazer recusou terminantemente: nunca daria a irmã em casamento a um cristão e, de todas as formas, esta já estava prometida ao rei de Marrocos.
O rei Ramiro, vexado, pareceu aceitar a recusa, mas pediu ao astrólogo Amã que estudasse os astros para decidir qual a melhor altura para raptar a princesa e levou-a consigo nessa data propícia. Dando por falta da irmã, Alboazer ainda chegou a tempo de encontrar os cristãos a embarcar no cais de Gaia. Gerou-se uma luta favorável ao rei cristão, que levou a princesa moura para Leão, a batizou e lhe deu o nome de Artiga, que tanto significava castigada e ensinada como dotada de todos os bens.
Alboazer, para se vingar, raptou a legítima esposa do rei Ramiro, D. Aldora, juntamente com todo o seu séquito. Quando o rei Ramiro soube do rapto ficou louco de raiva e, juntamente com o seu filho D. Ordonho e alguns vassalos, zarpou de barco para Gaia.
Aí chegados Ramiro disfarçou-se de pedinte e dirigiu-se a uma fonte onde encontrou uma das aias de D. Aldora a quem pediu um pouco de água, aproveitando para dissimuladamente deitar no recipiente da água meio camafeu, do qual a rainha possuía a outra metade. Reconhecendo a jóia, D. Aldora mandou buscar o rei disfarçado de pedinte e, por vingança da sua infidelidade, entregou-o a Alboazer.
Sentindo-se perdido, o rei Ramiro pediu a Alboazer uma morte pública, esperando com astúcia ganhar tempo para poder avisar o seu filho através do toque do seu corno de caça. Ao ouvir o sinal combinado, D. Ordonho acorreu com os seus homens ao castelo e juntos mataram Alboazer e o seu povo, para além de destruírem a cidade.
Levando D. Aldora e as suas aias para o seu barco, o rei Ramiro atou uma mó de pedra ao pescoço da rainha e atirou-a ao mar num local que ficou a ser conhecido por Foz de Âncora.
O rei Ramiro voltou para Leão onde se casou com a princesa Artiga, de quem teve uma vasta e nobre descendência.
Versão mais antiga
D. Ramiro II, rei das Astúrias e de Leão, que reinou desde o anno de 931 até o de 950, n’uma excursão que fez de Viseu, onde então residia, por terras de moiros, viu e enamorou-se da formosa Zahara, irmã de Alboazar, rei moiro, ou alcaide do castello de Gaia sobre o rio Douro.
Recolheu-se D. Ramiro a Viseu com o coração tão captivo, e a razão tão perdida, que sem respeito aos laços, que o uniam sua esposa D. Urraca, ou, como outros lhe chamavam, D. Gaia, premeditou e executo: o rapto de Zahara.
Emquanto o esposo infiel se esquecia de Deus e do mundo nos braços da moira gentil, n’um palacio á beira mar, o vingativo irmão de Zahara, trocando affronta por affronta, veiu de cilada, protegido pela escuridão de uma noite, assaltar e roubar nos seus proprios paços a rainha D. Gaia.
A injuria vibra n’alma de Ramiro o ciume e o desejo de vingança. O ultrajado monarcha vôa á cidade de Viseu, escolhe os mais valentes d’entre os seus mais aguerridos soldados, e lá vae á sua frente caminho do Douro.
Chegando á vista do castello d’Alboazar, deixa a sua cohorte occulta n’um pinhal, e disfarçado em trajos de peregrino, dirige-se ao castello, e por meio de um annel, que faz chegar às mãos de D. Gaia, lhe annuncia a sua vinda.
O peregrino é introduzido immediatamente á presença da rainha, que fica a sós com elle. Alboazar tinha ido para a caça. D. Ramiro atira para longe de si as vestes e as barbas, que o desfiguravam, e corre a abraçar a esposa. Esta porem repelle-o indignada, e lança-lhe em rosto a sua traição.
No meio de um vivo dialogo de desculpas de uma parte, e de recriminações da outra, volta da caçada Alboazar. D. Ramiro não póde fugir. Já se sentem na proxima sala os passos do moiro. A rainha, parecendo serenar-se, occulta o marido n’um armario, que na camara havia. Mas apenas entrou Alboazar, ou fosse vencida d’amor por elle, ou cheia d’odio para com o esposo pela fé trahida, abre de par em par as portas do armario, e pede vingança ao moiro contra o christão traidor.
D’ahi a pouco era levado el-rei D. Ramiro a justiçar sobre as ameias do castello. Chegado ao logar da execução pediu o infeliz, que lhe fosse permitido antes de morrer despedir-se dos sons accordes da sua buzina. Sendo-lhe concedida esta derradeira graça, D. Ramiro empunha o instrumento, e toca por três vezes com todas as suas forças.
Era este o signal ajustado com os seus soldados, escondidos no próximo pinhal, para que, ouvindo-o, lhe acudissem apressadamente. Portanto n’um volver d’olhos foi o castello cercado, combatido, tomado, e depois incendiado. A desprevenida guarnição foi passada ao fio da espada, e Alboazar teve a sorte dos valentes: – expirou combatendo. E D. Gaia, como ao passar o Douro para a margem opposta, se lastimasse e mostrasse dôr, vendo abrazar-se o castello, foi victima tambem do ciume de D. Ramiro, que cego d’ira a fez debruçar sobre o bordo do barco, cortando-lhe a cabeça de um golpe d’espada.
A fortaleza em ruinas ficou o povo chamando o castello de Gaia, e á margem do rio, onde aportou o barco do D. Ramiro, deu-lhe o nome de Miragaia, em memoria d’aquelle fatal mirar da misera rainha.
Fonte Biblio PINHO LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Portugal Antigo e Moderno Lisboa, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006 [1873] , p.Tomo XII, pp. 1674-1675